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segunda-feira, 24 de agosto de 2015

A ESPIRITUALIDADE LITÚRGICA CARMELITANA (3ª Parte)

Frei James Boyce, O.Carm.

Espiritualidade Litúrgica Carmelitana Medieval

Introdução
Uma discussão sobre a espiritualidade litúrgica carmelitana medieval responde a pergunta: “O que os carmelitas medievais consideraram importante em sua herança e como a celebraram liturgicamente?” O objetivo deste capítulo é discutir os aspectos principais da herança carmelitana, o modo com que os carmelitas medievais a viam e examinar como eles a celebravam liturgicamente. Estes elementos são:

1)      A herança da Terra Santa
2)      A devoção à Maria
3)      Novos santos acrescentados à liturgia, refletindo sua inserção no Ocidente.

São significativos também os aspectos litúrgicos ausentes, pelo menos, dos manuscritos medievais até o século XV.[i]  Eles incluem festas carmelitanas próprias, cuja existência antes do Concílio de Trento não se pode provar: as liturgias para Santo Elias e Santo Eliseu, que começaram a ser celebradas apenas no período Tridentino; e um ofício padronizado para a festa de Nossa Senhora do Monte Carmelo, que não aparece em nenhum manuscrito antes de 1500.

A Herança da Terra Santa
Várias festas litúrgicas proeminentes no Rito do Santo Sepulcro continuaram no rito carmelitano e se distinguiram de outras observâncias litúrgicas:

a)      A Celebração da Ressurreição, celebrada no último Domingo do ano litúrgico;
b)      As festas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, celebrada em 06 de outubro;
c)      A festa da Transfiguração, celebrada em 06 de agosto;
d)     Santa Maria Madalena;
e)      A tradição Petrina e Paulina.

A Celebração da Ressurreição
A própria raison d’etre para o Rito do Santo Sepulcro era o túmulo do Senhor, do qual recebeu seu nome. Dificilmente podemos imaginar o esforço que deve ter sido para os cruzados atingirem o local verdadeiro onde acreditavam que o Senhor tinha sido sepultado. Dentro do contexto da Terra Santa, o local deste túmulo era a meta para todos os peregrinos, desde o tempo de Constantino até o período medieval e servia como a única razão para Jerusalém ser o principal local de peregrinação.[ii]  A festa da Celebração da Ressurreição revive assim, mais uma vez, o evento único, intimamente vinculado com o próprio local sagrado e que, como nos lembra São Paulo, define nossa própria salvação: “se Cristo não ressuscitou, a fé que vocês têm é ilusória” (1Cor 15,17).[iii]  Enquanto a própria Páscoa é central para todo rito litúrgico, a celebração da ressurreição é uma festa distinta, restrita a costumes relacionados com a Terra Santa. Esta festa praticamente herdava da festa da Páscoa todos os seus cantos e orações, mas ela era uma celebração que, feita imediatamente antes do início do Advento, mostrava-se como a culminação de todo o Ano Litúrgico. Teologicamente isto significa uma segunda celebração da experiência da Páscoa. Ela também ocorre em novembro, um tempo quando a Igreja universal, incluindo este Rito, celebra as festas de Todos os Santos e de Todas as Almas, aqueles que na fé se foram antes de nós. Portanto, a Celebração da Ressurreição reforça o significado dos efeitos da ressurreição na humanidade num tempo quando a igreja celebra a morte. Isto tem um impulso teológico positivo e uma reafirmação de esperança em meio à aflição.
Toda Eucaristia por definição celebra a morte e a ressurreição do Senhor. Através da Eucaristia diária, prescrita aos primeiros eremitas no Monte Carmelo e, subseqüentemente, observada através da Ordem, o mistério Pascal era um fenômeno constante para os carmelitas. Pela festa da Celebração da Ressurreição o que era celebrado em um único dia, agora prolonga-se em uma estrutura mais ampla, por todo o ano litúrgico. A localização da festa, no último domingo do ano litúrgico, prolongava consideravelmente o evento em seu aspecto litúrgico. Enquanto a época da Páscoa termina em Pentecostes, seu reforço pouco antes do Advento tinha o efeito de mantê-la em primeiro lugar na mente até o começo do próximo ciclo principal, aquele do nascimento do Senhor começando com o primeiro Domingo do Advento. Tal visão do ano litúrgico é peculiar ao Rito do Santo Sepulcro e nas observâncias que derivam dele e é explicado por sua estrita associação com o túmulo do próprio Senhor.

A Festa dos Patriarcas Abraão, Isaac e Jacó
A celebração de personagens do Antigo Testamento como uma festa, igual aos personagens do Novo Testamento, é certamente notável. Ela mostra que os patriarcas foram aceitos como santos na liturgia, apesar da convicção da ressurreição e da designação associada de santidade não serem necessariamente uma parte da vida espiritual deles como judeus observantes. O fato de Nosso Senhor ter se referido aos patriarcas como presentes no reino (Lc 13,28) e citado a referência a Deus de Êxodo 3,15: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (Mc 12,26; também cf. Mt 22,31-32 e Lc 20,37-38), usando deliberadamente o tempo presente como uma prova para os saduceus de que há uma ressurreição, legitimaria a festa que os venerava como santos. Mas tal festa é, sem dúvida, digna de nota.
A festa dos patriarcas fornecia um elo entre os carmelitas e a própria Terra Santa, da mesma maneira que o Rito do Santo Sepulcro. Os carmelitas veneravam os heróis do Antigo Testamento, pessoas que foram especialmente escolhidos por Deus e a quem Deus se revelou de um modo único e pessoal. A versão carmelitana desta festa é muito mais completa do que a sua versão complementar do Santo Sepulcro (pelo menos nas fontes existentes), geralmente restrita à uma única oração, ainda que em sua versão carmelitana a festa seja particular.[iv]
A compilação dos textos para este ofício é particularmente interessante: os responsórios vêm de textos que são específicos aos profetas enquanto que as antífonas são mais gerais. Os responsórios, tirados do domingo antes da Quaresma (conhecida na liturgia medieval como “Domingo da Qüinquagésima” porque caía cinqüenta dias antes da Páscoa), se inspiram nas passagens do Antigo Testamento que os menciona pelos nomes. As antífonas são tiradas da comunhão de vários santos e também do próprio da festa de Todos os Santos. Os textos se referem repetidamente a santos ou a homens santos em geral, mas afirma claramente a santidade dos patriarcas. Ainda que esta referência seja feita presumivelmente, em respeito à estima deles dentro do contexto do Antigo Testamento, também pode ser encarada como alguma forma política, já que nenhum deles foi oficialmente reconhecido como um santo pela Igreja. A natureza incomum desta festa provavelmente encorajou os carmelitas a enfatizarem a santidade deles impondo uma festa ao rito católico.
A veneração dos patriarcas como homens santos no ritual carmelitano é significativa, já que a busca pela santidade é uma parte intensa da vocação carmelitana. Por isso, eles escolhem os patriarcas não apenas para enfatizar a santidade destes heróis do Antigo Testamento, mas para assumirem também a santidade deles. Assim, a festa lembra, no seu primeiro impulso, a sermos pessoas de oração acima de qualquer coisa. A ausência de um fundador específico permitiu aos carmelitas adotar exemplos de santidade onde quer que se encontrem.

A Festa da Transfiguração
A Festa da Transfiguração, que revive uma experiência única na vida de Nosso Senhor, bem como seu relacionamento com alguns discípulos escolhidos, foi identificada pela tradição numa localização específica da Terra Santa: o Monte Tabor.[v]  A associação óbvia da festa com este local da Terra Santa justificou sua inclusão, numa data bem antiga, na liturgia do Santo Sepulcro e, posteriormente, no Rito carmelitano. No entanto, sua celebração não está absolutamente restrita ao Santo Sepulcro e à tradição carmelitana. De fato, o monge cluniacense Pedro, o Venerável, é reconhecido como o escritor de um ofício para a Transfiguração.[vi]  Alguns dos textos do rito carmelitano são semelhantes à versão de Pedro, mas existem discrepâncias claras entre os dois ofícios. Todas as orações e cantos para esta festa são tirados do próprio relato das Escrituras, que serve como modelo para a vida contemplativa e ajusta-se adequadamente ao ideal carmelitano. Pedro, Tiago e João foram escolhidos pelo Senhor para acompanhá-lo até o monte onde, através da contemplação, sua compreensão do Senhor e o seu significado crescem imensuravelmente. Entrando neste relacionamento privilegiado com o Senhor, eles não apenas o vêem transfigurado, mas a própria fé deles também é transformada.
A festa da Transfiguração serve de inspiração para todo carmelita que busca a transformação pela oração. A intimidade dos discípulos com o Senhor serve como um modelo para todos que buscam um relacionamento com Jesus através da vida de oração. Como Pedro, Tiago e João, cada carmelita foi escolhido por Deus para caminhar com o Senhor buscando uma consciência mais profunda de Deus e de si mesmo. A ascensão do Monte Carmelo, como aquela do Monte Tabor, leva os participantes à presença de Deus, numa união mais profunda com o Senhor.

Santa Maria Madalena
A festa de Santa Maria Madalena se destaca na liturgia carmelitana medieval, fazendo parte de um amplo conjunto que enfatiza todo o Mistério Pascal. Sendo a primeira testemunha da ressurreição, Maria Madalena goza de grande importância na vida da Igreja, incluindo a liturgia. A organização carmelitana da festa foi diretamente recebida do ritual do Santo Sepulcro. A observância da Terra Santa, por sua vez, baseava-se numa tradição francesa, o que também explica a proeminência de Santa Maria Madalena, já que o mosteiro beneditino francês de Vezelay foi de muita influência na propagação de seu culto.[vii]  Por extensão, qualquer liturgia associada a do Santo Sepulcro também venerava Maria Madalena com grande solenidade. A liturgia carmelitana seguiu a tradição do Santo Sepulcro com fidelidade tal, que até herdou a típica confusão na qual Maria estava envolvida. Assim, um dos responsórios, Optimam partem, refere-se à Maria, que ao contrário de sua irmã Marta, escolheu a melhor parte, isto é, a contemplação. A confusão entre Maria de Betânia e Maria Madalena na liturgia carmelitana refletiu a confusão geral, bíblica e medieval, sobre ela.[viii]  Por outro lado, esta antífona permitiu aos carmelitas darem expressão ao valor da vida contemplativa que eles abraçaram dentro de um contexto litúrgico. Desse modo, a idéia de que “ela escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” reforçou, para o carmelita medieval, o valor duradouro da vocação contemplativa que escolheram.
O papel teológico central de Maria Madalena como anunciadora da ressurreição também estabeleceu o relacionamento entre ela e o evento da Páscoa, fato de grande importância na vida de cada cristão e, particularmente, celebrado dentro da liturgia carmelitana. A história de sua ida ao túmulo com perfumes e aromas, para ungir o corpo do Senhor, recontada na palavra e cantada no ofício de Santa Maria Madalena, servia para os carmelitas como outra lembrança do poder permanente do evento da Páscoa. Esta história também lembrava ao carmelita que seu objetivo na vida, como o de Maria Madalena, era servir às necessidades do Senhor e, por extensão, às da Igreja. Assim, a vida de Maria Madalena serviu como um excelente exemplo para o carmelita medieval de como combinar eficazmente a contemplação e os estilos de vida ativa dentro de uma única vocação.
Maria Madalena, como a pecadora arrependida, também serve de modelo para o carmelita que, através da vida de oração e de penitência, busca a transformação para a santidade. A busca contemplativa de Deus é afastar-se das tentações mundanas para viver na presença de Deus. Assim como a Regra detalhou a armadura espiritual a ser usada enquanto o carmelita combate o fogo do mal, o exemplo de Maria Madalena, passando do pecado à santidade também serve como um modelo eficaz para o carmelita cuja vida é de conversão contínua.

A Tradição Petrina e Paulina

Nunca é demais ressaltar o significado dos santos Pedro e Paulo na vida litúrgica da Igreja Cristã. O primado de São Pedro, aquele que foi encarregado de presidir a Igreja pelo próprio Senhor, sempre foi de grande significado litúrgico. A conversão de São Paulo, de um vigoroso perseguidor dos cristãos a um apóstolo entusiasmado, espalhando a mensagem cristã por muitos lugares do mundo antigo, foi provavelmente o evento mais importante na vida da Igreja primitiva. Os carmelitas, a exemplo do rito do Santo Sepulcro, celebravam as festas da Conversão de Paulo, da Cátedra de São Pedro, dos santos Pedro e Paulo e a Celebração de São Paulo. Além disso, nas festas carmelitanas Petrinas e Paulinas a ordem das partes, especialmente para o ofício, divergia consideravelmente de outras tradições e seguiam fielmente o rito do Santo Sepulcro.
A importância de festas em memória dos santos Pedro e Paulo na liturgia carmelitana servia de recordação das vidas heróicas daqueles dois importantes líderes, assim como o estabelecimento da Ordem na vida da Igreja. Quando se incorporaram nas estruturas da Igreja, os carmelitas floresceram como uma Ordem e a autoridade eclesiástica, sugerida pela festa da Cátedra de São Pedro, foi algo que eles acolheram com alegria. O exemplo corajoso e o zelo pelo Evangelho, exemplificados de formas diferentes por Pedro e Paulo, serviam de modelo para os carmelitas, especialmente quando eles adotaram a estrutura mendicante.

A devoção mariana
Desde o começo da Ordem os carmelitas dedicaram-se à Virgem Maria. A tradição diz que o oratório no Monte Carmelo foi dedicado em honra a Maria,[ix]  e que a identificação dos carmelitas como “Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo” foi adotada já em 1252.[x]  Os carmelitas observaram as festas marianas comuns à toda a Igreja: a Purificação em 02 de fevereiro, a Anunciação em 25 de março, Nossa Senhora das Neves em 05 de agosto, a Assunção em 15 de agosto, a Natividade em 08 de setembro e a Concepção da Virgem em 08 de dezembro. O Capítulo Geral de Frankfurt em 1393 acrescentou duas novas festas: a Visitação em 02 de julho e a Apresentação de Maria em 21 de novembro.
As cinco antífonas para as primeiras Vésperas em todas as festas marianas são as mesmas na liturgia carmelitana e coincidem exatamente com suas correspondentes na liturgia do Santo Sepulcro. Até a música é a mesma em todas as ocasiões, de modo que eles foram muito cuidadosos em preservar intacto este aspecto de sua herança da Terra Santa. Esta associação das antífonas marianas preservou o elo entre os carmelitas espalhados por todo mundo e a observância original no Monte Carmelo, se é que os carmelitas realizaram conscientemente este feito. As antífonas são as seguintes:
Hec est regina virginum que genuit regem velud rosa decora virgo dei genitrix per quam reperimus deum et hominem alma virgo intercede pro nobis omnibus.
Eis a rainha das virgem que gerou o rei; verdadeiramente uma bela rosa, a virgem mãe de Deus, através de quem nos aproximamos de Deus e do homem; ó virgem bela intercede por nós.
Te decus virgineum virgo dei genitrix maria te solem inter omnes virgines castissimam ex oramus ut pro salute nostra apud dominum intercedere digneris.
Tu és o esplendor das virgens ó virgem Maria, mãe de Deus; somente tu dentre todas as virgens sois a mais casta; assim, rezamos para que tu possas dignar-te a interceder por nossa salvação diante do Senhor.
Sub tuum presidium confugimus dei genitrix nostras deprecationes ne despicias in necessitatibus sed a periculis libera nos semper virgo benedicta.
Sob vosso trono nos reunimos ó mãe de Deus; não ignoreis nossas súplicas em tempos difíceis, mas livrai-nos sempre do mal ó bem-aventurada virgem.

Sancta Maria succurre miseris iuva pusillanimes refove flebiles ora pro populo interveni pro clero intercede pro devoto femino sexu.
Santa Maria socorrei os pobres, ajudai os fracos, consolai os tristes, rogai pelo povo, protegei o clero, interceda por todas as mulheres.
Beata Dei genitrix maria virgo perpetua templum domini sacrarium spiritus sancti tu sola sine exemplo placuisti domino ihesu christo ora pro populo interveni pro clero intercede pro devoto femino sexu.
Bem-aventurada mãe de Deus, Maria, sempre virgem, templo do Senhor, receptáculo do Espírito Santo, somente vós sem exemplo fostes agradável ao Senhor Jesus Cristo; orai pelo povo, intervenha pelo clero, interceda por todas as mulheres.
Todas estas antífonas têm como tema comum Maria como intercessora, o que era parte integral da devoção mariana carmelitana. Pela postura do suplicante, pequeno e humilde, que não quer nada mais além de ser agradável a Deus, o carmelita implora o favor da intercessão de Maria. Ela, como o receptáculo do sagrado (“templo do Senhor e receptáculo do Espírito Santo”), oferece a razão para venerá-la. A idéia de Maria como aquela que nos protege do perigo, predominante na terceira antífona, encoraja o carmelita a nela confiar. Isto é especialmente tocante quando consideramos que na Terra Santa a segurança na prática da fé não era dada como certa e que os últimos frades no Monte Carmelo foram mortos em 1291. O uso das mesmas partes para todas as festas marianas deu um senso de consistência e de unidade à devoção litúrgica carmelitana à Maria e manteve uma ligação permanente com a primeira experiência que eles tiveram no Monte Carmelo. A festa da Concepção da Virgem é importante para a liturgia carmelitana já que os carmelitas, junto com os franciscanos, fizeram uma ativa campanha para sua aceitação pela Igreja.[xi]  Para os carmelitas a festa representava uma extensão de sua já forte devoção mariana. Os cantos foram tirados da festa da Natividade de Maria em vez de serem composições novas, incluindo as antífonas padrões das primeiras Vésperas. Assim, eles foram capazes de acrescentar uma nova festa ao seu repertório, ajustada ao modelo de sua devoção mariana, sem interferir com suas obrigações para com a observância do Santo Sepulcro. A festa foi adotada na liturgia em 1306,[xii]  pouco antes da promulgação da Rubrica de Siberta que, posteriormente, consagrou seu uso por todo o período medieval.
Nestas festas marianas, onde orações e cantos padrões foram adaptados para a festa individual, a ordem das partes dentro de cada festa dá a celebração seu caráter especial. Deste modo, a liturgia carmelitana tinha uma ordem peculiar de cantos para cada festa, mas os cantos e as próprias orações eram tradicionais. A devoção carmelitana a Maria os impelia a adotar um grande número de festas marianas e a celebrá-las num estilo uniforme.
A festa da Visitação incluía um ofício, parcialmente rimado, que era comum no ocidente e entrou na liturgia carmelitana no Capítulo de Frankfurt em 1393.[xiii]  A festa só havia sido promulgada no ocidente pelo papa Bonifácio IX, em sua bula Superni benignitas conditoris e desde o princípio era observada em 02 de julho.[xiv]  Depois que o dominicano Raymond de Capua escreveu o ofício rimado para a festa,[xv]  os carmelitas seguiram o ofício apresentado pelo papa em sua bula. Os textos para a festa da Visitação derivam do relato de Lucas, incluindo partes do Magnificat adaptadas para o uso no ofício. Além do aspecto da devoção mariana, a festa da Visitação era particularmente importante para os carmelitas, já que ela celebra a visita de Maria a sua prima Isabel e a mútua alegria que elas tiveram pela ação de Deus em suas vidas. O(A) religioso(a) carmelitano(a) acolhe a ação de Deus em sua vida através da vida comunitária. Assim como Maria e Isabel ganharam novo discernimento sobre o mistério do plano de Deus em suas vidas através do diálogo, assim, também, o carmelita cresce na consciência da presença de Deus através da oração pessoal e da vivência comunitária.
A festa da Apresentação da Virgem foi introduzida no Ocidente pelo cruzado Philippe de Mezieres, chanceler do ducado de Chipre, que escreveu um ofício para ela. Este ofício foi primeiramente apresentado na igreja franciscana em Avignon em 21 de novembro de 1372, na presença da corte papal.[xvi]  Os carmelitas o aceitaram em sua liturgia em 1393.[xvii]  A festa é interessante, já que Philippe de Mezieres era um amigo pessoal do carmelita São Pedro Thomas e até escreveu a primeira biografia completa deste santo carmelitano.[xviii]  No entanto, apesar desta amizade, o ofício que Philippe compôs não era usado na liturgia carmelitana.[xix]
Os textos para a festa, em vez de se referirem à apresentação de Maria no Templo, baseado no Evangelho apócrifo de Tiago, fazem uma reflexão sobre a experiência da apresentação com abundantes referências a Maria relacionadas ao Carmelo. Embora nenhuma referência no manuscrito indica que tenha sido um carmelita quem compôs os textos, eles são tão específicos que podemos quase certamente chegar a esta conclusão. A maior parte da música foi adaptada de outros ofícios, principalmente o de São Tomás de Cantuária. Provavelmente por causa da popularidade do culto e da alta estima devotada a seu compositor, Bento de Peterborough.[xx]  O grande número de festas marianas na liturgia carmelitana assegurava que a presença dela fosse invocada num esquema sistemático. A devoção popular da Missa da Bem-aventurada Virgem no sábado manteve presente, dentro de uma rotina semanal, tudo o que era celebrado nas muitas festas ao longo do ano.
Ao considerarmos o conjunto das festas marianas na liturgia carmelitana, percebemos que a veneração da santa mãe de Deus era uma parte integral da vida de fé e da experiência do culto que eles tinham. As várias festas simplesmente deram expressão contínua à profunda devoção que os carmelitas tinham por Maria e ao compromisso deles em viver como discípulos de Jesus Cristo. Os carmelitas aceitaram todas as festas marianas regulares aprovadas pela Igreja e as tornaram suas. Eles viam Maria como uma intercessora diante de Deus, como o esplendor do Carmelo, a epitomia de virtude e aquela cuja santidade e fidelidade eles buscavam imitar em sua própria jornada humana.

Novos santos acrescentados à liturgia carmelitana
Os novos santos acrescentados à liturgia carmelitana durante o período medieval refletem seu vínculo com a Terra Santa, assim como sua adaptação à vida na sociedade ocidental.

Santa Ana
A festa de Santa Ana, mãe da Virgem Maria, foi um destes acréscimos posteriores à liturgia e é uma extensão lógica da devoção carmelitana à Maria. Os textos e a música são de um ofício rimado[xxi]  que não é próprio da liturgia carmelitana. A presença de Santa Ana na Terra Santa, assim como seu importante relacionamento com Maria e Jesus, serviram de justificação para que adotassem esta festa na liturgia. A festa se relaciona intimamente com a da Apresentação, já que Ana e Joaquim foram os pais que levaram Maria ao templo. Esta festa também está ligada a das Três Marias, que obviamente não seria possível sem sua contribuição. Como Santa Ana era uma parte integrante da vida de Maria, ela aparece como uma parte integrante da liturgia carmelitana.
Ana e seu esposo Joaquim representam para o carmelita os fiéis que confiaram em Deus e em quem Deus realiza grandes coisas. Apesar de sua idade avançada, Ana recebeu o privilégio de gerar a mãe do Redentor. Contudo, como uma anciã que pode conceber, ela é semelhante à prima de Maria, Isabel, assim como a Ana e a outras mulheres santas do Antigo Testamento. Para o carmelita, bem como para Santa Ana, a fidelidade silenciosa aos caminhos de Deus pode gerar muitos frutos espirituais.

As Três Marias
A festa das Três Marias, muito popular em Provença, entrou na liturgia carmelitana no Capítulo Geral de Lion em 1342.[xxii]  A festa das Três Marias está intimamente ligada à de Santa Ana, já que ela é tradicionalmente a mãe das três: da mãe de Jesus, por Joaquim e de uma segunda Maria, por Cléofas. Esta gerou outra Maria que, por sua vez, casou-se com Alfeu e gerou São Tiago Menor, São Simão, São Judas e São José, o Justo. Após a morte de Cléofas, Ana casou-se com Salomas e gerou uma terceira Maria, que foi mãe de São Tiago Maior e de São João Evangelista. Esta festa baseia-se na lenda onde Lázaro, Maria Madalena e seus companheiros foram deixados à deriva, num barco sem remos, que foi milagrosamente transportado para o sul da França, aportando perto da vila conhecida hoje como Saintes-Maries-de-la-Mer. De lá, a devoção às Três Marias espalhou-se rapidamente, assim como o culto a Santa Maria Madalena propagou-se a partir da abadia beneditina de Vezelay.[xxiii]
A festa não apenas trata dos personagens que viveram na Terra Santa, mas ela também diz respeito a um carmelita em especial, Jean de Venette, que escreveu esta Crônica das Três Marias em 1357.[xxiv]  Jean de Venette tornou-se prior do Carmelo de Paris em 1339 e, mais tarde, foi provincial da França. Como tal, esteve inegavelmente presente no Capítulo Geral de Lion que adotou a festa em 1342. Seu interesse pessoal é evidente nesta devoção e ele possivelmente influenciou os carmelitas a aceitarem tal festa em sua liturgia. A festa foi acrescentada ao complemento das festas marianas, celebrada em 25 de maio. Ela também demonstra a influência de uma devoção local numa área muito mais ampla: embora a festa das Três Maria estivesse restrita ao sul da França e a regiões da Itália,[xxv]  uma vez aceita na liturgia carmelitana ela gozou de observância universal dentro da Ordem.
A festa das Três Marias está relacionada ao evento da Páscoa, já que as mulheres santas descobriram o túmulo vazio do Senhor ressuscitado. Ela está intimamente ligada à festa de Santa Maria Madalena que as acompanhou ao túmulo e é muitas vezes confundida com estas Marias. Esta festa celebra aqueles que descobriram a ressurreição e ajudaram a anunciar aos outros o evento da Páscoa. Ela também enfatiza a devoção delas a Jesus cujo corpo elas foram ungir. Os carmelitas homenagearam as irmãs de Maria em sua liturgia como aquelas que seguem as pegadas do Senhor. A fidelidade à pessoa de Jesus determinou o curso de suas vidas e determina também a vida de cada carmelita.

Reflexões sobre a liturgia carmelitana
Os manuscritos medievais que examinamos geralmente são anteriores a 1450. Eles não preservam um ofício e uma Missa próprios nem para Elias nem para Eliseu, o que é surpreendente. Embora o ofício e a Missa para estes santos tenham sido estabelecidos antes do Concílio de Trento, se tal observância ocorreu ou não no período medieval permanece uma questão aberta. Evidentemente, se foi observado, nenhum texto uniforme ou música sobreviveu a este período.
A liturgia carmelitana medieval permaneceu intimamente ligada ao ritual do Santo Sepulcro, seguindo-o detalhadamente na maior parte do ano. O mistério Pascal, incluindo as festas da Celebração da Ressurreição, de Santa Maria Madalena e das Três Marias, permaneceu central na sua observância. Os cantos e as orações usadas para a liturgia formal foram claramente definidos pela Rubrica de Sibert de Beka, mas considerável liberdade foi permitida quando se tratou do detalhe musical. Os santos relacionados com a própria Terra Santa tiveram algum destaque na liturgia, tanto aqueles com celebrações relativamente pequenas como aqueles que gozavam de uma observância bem desenvolvida, como a festa dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó.
A devoção à Maria permaneceu destacada na observância litúrgica carmelitana medieval, caracterizando-o especialmente pelas antífonas das Vésperas nas quais o frade implorava pela intercessão da Virgem Maria. O número de festas marianas especiais era suficiente para assegurar uma devoção  periódica  a Maria, dentro de um esquema regular, enquanto as orações e as celebrações da Bem-aventurada Virgem asseguravam sua veneração   durante a semana. Assim, o carmelita permanecia fiel a seu  título de  “irmão  da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo” e modelava diretamente sua vida na vida da mãe de Deus.
A forte devoção aos santos Pedro e Paulo pode ter sido parte da incorporação dos carmelitas na tradição mendicante da Igreja ou pode vir de sua busca por um modelo diante da aprovação oficial de Elias e de Eliseu. No entanto, as festas principais destes dois santos proeminentes foram claramente celebradas com grande solenidade dentro da tradição carmelitana e os detalhes da observância dos carmelitas associou-os à tradição do Santo Sepulcro em vez de a qualquer outra na Europa ocidental. A devoção carmelitana aos Santos Pedro e Paulo também caracterizou a lealdade que tinham pela Igreja. Este é um reconhecimento de que o papel distinto dos carmelitas como eremitas e mendicantes foi exercido dentro de um contexto da Igreja ao qual permaneceram comprometidos. Como modelos, Pedro e Paulo simbolizam as dimensões administrativas e carismáticas da Igreja, nas quais os carmelitas participam.
(Veja na 4ª Parte: Os Carmelitas e o Concílio de Trento)




[i]  Por exemplo, as fontes musicais mais recentes do século XV são os códices carmelitanos de Mainz, datados de 1430 e 1432 respectivamente; cf. Boyce (1984, 1986 e 1987).
[ii]  Richard, NCE; Baldi, NCE.
[iii]  Todas as traduções são da Bíblia Edição Pastoral (Paulus).
[iv]  Por exemplo, um antigo breviário do Santo Sepulcro e depois adaptado para o uso carmelitano (Paris, BN lat 10478) tem um arranjo muito mais simples da festa do que o rito carmelitano plenamente desenvolvido.
[v]  Guyot, NCE, Horvath, NCE.
[vi]  Este ofício está preservado no manuscrito Paris, BN lat. 17716; cf. Leclercq (1946), p. 17.
[vii]  Saxer (1975) fez um estudo profundo e altamente valioso sobre o culto a Santa Maria Madalena.
[viii]  Haskins (1993) discute a confusão sobre Maria Madalena nas Escrituras assim como a compreensão dela no período medieval.
[ix]  Smet (1988), Vol. I, p. 8.
[x]  Smet (1988), Vol. I, p. 8.
[xi]  Cf. Bouman (1958), Forcadell (1954) e Van Dijk (1954) para uma discussão sobre esta festa.
[xii]  Forcadell (1954), 184.
[xiii]  Wessels (1912), Vol. I, pp. 109-110.
[xiv]  Pfaff (1970), p. 40.
[xv]  Bonniwell (1945), pp. 231-32.
[xvi]  Os textos da apresentação original foram publicados em Coleman (1981). Os dois manuscritos originais estão hoje em Paria, BN lat. 17330 e 14454. Discuto as variantes entre estas duas versões em Boyce (1993).
[xvii]  No Capítulo Geral de Frankfurt; cf. Wessels (1912), Vol. I, pp. 109-110.
[xviii]  Smet (1954).
[xix]  Discuto as diversas celebrações da festa nos manuscritos litúrgicos carmelitanos em Boyce (1991).
[xx]  M. J. Hamilton, NCE: o ofício de São Tomás provou ser popular para adaptação a outros ofícios. Edwards (1990) mostrou o relacionamento íntimo entre o ofício de São Tomás de Canterbury e o de São David de Wales.
[xxi]  Um ofício rimado é aquele que contém textos poéticos cujas linhas seguem um esquema rimado e cuja música é original e normalmente bem elaborada.
[xxii]  Zimmerman (1907), Vol. I, p. 141.
[xxiii]  Cf. Driscoll (1973 e 1975), Boyce (1989).
[xxiv] Driscoll (1975); Coville (1949).
[xxv]  A devoção a Santa Maria Salomé na Itália baseava-se em Veroli; cf. minha edição deste ofício de Boyce (1988b).

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