RAFAEL CHECA CURI
Faz-se mister tomar em consideração que
toda experiência de Deus, que toca o homem em particular, realiza-se em uma
dúplice dimensão: a espacial, que tem lugar na comunidade ou povo de Deus, e a
temporal, que se verifica no âmbito da história da salvação.
A.
contemplação, como suprema experiência de Deus nesta vida, não escapa a esta
dupla circunstância.
A
isto se deve que a história da salvação, desde seus começos até a sua
consumação, desde o pecado até a justificação, é a realização, a nível comunitário
desta outra história, a nível pessoal, que se verifica em cada um dos salvados.
Eu
encontro um paralelo iluminador entre o itinerário percorrido pelo
contemplativo, desde o pecado até a união divina e a trajetória percorrida pelo
povo israelita, desde a escravidão do Egito até a terra prometida.
Efetivamente,
alguns místicos encontraram na história da libertação de Israel da escravidão
do Egito, como narra o Êxodo, até a entrada na terra prometida (Jos. 24), uma
figura de sua experiência pessoal, e quiseram expressá-lo assim, ao tentar
traduzi-la. Bastaria citar são João da Cruz cujas obras se situam dentro de um
paralelo com a seqüência da história da salvação. O díptico Subida - Noite, o
Cântico Espiritual e a Chama, parecem seguir este processo por etapas.
A
saída do Egito, de noite, sem que disso se apercebessem os egípcios; mortos os
primogênitos (Ex. 12) e a passagem do Mar Vermelho (Ex. 14), parece encontrarem
seu correspondente na Subida-Noite, que exige ruptura, desprendimento, morte de
apetites e de afeições desordenadas, obscuridade-noite de sentidos e de
espírito.
A
etapa do deserto caracteriza-se pela aridez, pela secura, pela aparente
limitação, pela infertilidade, exige austeridade, fé e confiança em Yahvé. Nela
se faz presente o Deus do povo escolhido na nuvem, na coluna de fogo (Ex. 13,
21), no maná, na água e na presença da arca. Encontra, de certo modo, uma
correspondência no processo do Cântico Espiritual, onde a alma em busca de
Deus, o encontra nas mediações: caminha em fé, em esperança, em amor, segura
somente na palavra de seu Amado.
O
deserto, caminho da terra prometida, é também aliança e compromisso de amor e
de fidelidade de Yavé (Ex. 19, 1-6). A ação de Deus sobre seu povo centra-se em
um homem representativo, Moisés. A este o convida para entrar na sua
intimidade, para falar com Ele (Ex. 19, 9-16), manifesta-lhe sua glória e
chama-o por seu nome. (Ex. 24, 36).
As
últimas estrofes do Cântico e da Chama de amor viva correm de parelha com o
momento culminante da manifestação da glória de Yavé, quando ele mesmo promete
a Moisés, que se lhe fará presente, sem que possa, porém, ver a sua face. (Ex.
33, 18-23).
A
terra prometida é o ponto final da trajetória (Jos. 24). Moisés não consegue
vê-lo nesta vida, como também não o consegue o homem. Depois da união
transformante e do matrimônio espiritual, tem que se descerrar o véu da
eternidade da glória, onde a contemplação já se não dá em fé e esperança,
porém, em luz e amor consumado.
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