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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

500 Anos de Santa Teresa de Jesus. (1ª Parte)

ASSEMBLEIA DE ESPIRITUALIDADE DOS CARMELITAS
- Província Carmelitana de Santo Elias-
Belo Horizonte- MG. Casa de Retiro São José. De 26 -30 de janeiro-2015.
Tema: 500 Anos de Santa Teresa de Jesus.
Pregador: Professor Francisco Catão, São Paulo.


A pedagogia de Santa Teresa de Jesus vista por um teólogo nos dias de hoje
Por Professor Francisco Catão, São Paulo.


1ª Parte: Premissa

Princípios diretores
Ver Teresa de Jesus, a partir da teologia de hoje, pode parecer estranho. Não seria mais correto, tanto do ponto de vista teológico como histórico, partir do ensinamento de Teresa, Doutora da Igreja, para aprendermos com ela como proceder nos caminhos da oração, traçados com tanta precisão no relato de suas experiências (Vida), nos escritos que deixou para suas filhas (Caminho de perfeição, Moradas)  e na abundante correspondência trocada com ilustres contemporâneos?
Relatos e escritos, aliás, rigorosamente fiéis à doutrina da Igreja e, ao mesmo tempo, tão ricos de observações psicológicas, que encantam ainda hoje a grande maioria dos psicanalistas, quer freudianos (Julia Kristeva, Thérese mon amour. Paris, Fayard, 2010), quer junguianos (Léon Bonaventure, Psicologia e vida mística. Petrópolis: Vozes, 1996²)!
Mas é justamente a preocupação de melhor conhecer Teresa, que nos leva a colocar seu ensinamento no contexto da Tradição espiritual cristã, como deve fazer sempre o teólogo. Assim como o pensamento de todo autor só se revela, de fato, quando situado no contexto histórico-cultural em que viveu, a teologia cristã só se elabora corretamente, tendo presente a fé, que, por sua vez nos é transmitida pelos profetas e pelos santos, trazendo sempre, por isso, as marcas das exigências espirituais e da cultura de sua época. É o que denominamos “a historicidade da fé”.
O trabalho teológico do Vaticano II foi todo feito à luz de um princípio fundamental, necessário para explicar ao mesmo tempo, a continuidade da fé cristã pregada pelos Apóstolos e formulada nos símbolos da fé desde as origens do cristianismo e a evolução da doutrina cristã, sempre renovada no tempo, nesses dois mil anos, e na grande diversidade cultural do mundo hoje globalizado.
Na época do Concílio o Pe. Congar repetia sempre: estamos vivendo em um tempo de mudança e muitas vezes nos falta uma Teologia da Mudança.
Coube a João XXIII formular lhe o princípio, no importante discurso de abertura do Vaticano II. Reinterpretando a famosa sentença do Commonitorium de  Vicente de Lérins (†445) num sentido, porém, complementar ao do Vaticano I (Dz 3026), mas teologicamente justificado (como o demonstrara Congar no seu estudo de 1954, Vraie et fausse reforme dans l’Église, sublinhar a continuidade do “depósito” ou “substância” da fé através da contínua mudança de suas expressões, de acordo com a evolução dos tempos e a dversidade das culturas.
Eis  famosa a passagem de Vicente de Lérins:
Crescat igiur et multum vehementerque proficiat, tan singulorum quam omnium, tan unius hominis quam totius Ecclesiae, aetatum ac saeculorum gradibus, intelligentia, scientia, sapientia: sed in suo dumtaxat genere, in eodem  scilicet dogmate, eode sensu eademque sententia
“Cresça, pois o conhecimento, tanto em cada indivíduo como de todos os homens, tanto pessoal quanto de toda a Igreja, através dos anos e dos séculos, desde que se mantenha a mesma  compreensão, o mesmo saber e a mesma   sabedoria da doutrina, do sentido e da linguagem empregada” (Commonitorium  primum. 23, nº 3, citado em DZ 3026)

João XXIII, no discurso de abertura do Vaticano II, Gaudet mater Ecclesia, distinguindo o “depósito” ou “substância” da fé, de suas expressões, ao mesmo tempo em que professava a permanência da substância, como todos os seus antecessores, acentuada, apenas cem anos antes por Pio IX (†1878), sustentou a constante necessidade de ajustar as expressões da fé aos tempos e às culturas. Dessa forma, não só removia o principal obstáculo teológico à renovação do pensamento cristão, como possibilitava o aggiornamento da Igreja, principal objetivo do Concilio.
O Concílio, veremos mais tarde, esboçou a elaboração da nova doutrina sobre a renovação da Igreja nos tempos atuais (Cf. Gaudium  et spes, nº 62), doutrina que cresceu e amadureceu nestes últimos cinquenta anos, através da obra reformadora de Paulo VI e de João Paulo II, da agudeza teológica de Bento XVI e da orientação pastoral de Francisco.
Visando analisar o ensinamento de Teresa, em particular sua pedagogia de iniciação à vida espiritual, de grande relevância para todos os cristãos que buscam a Deus nos dias atuais, apoiamo-nos principalmente nesses dois documentos.
Essa Teologia da Mudança, que distingue a substância da fé das suas expressões”, alimenta-se, a seu modo, do velho principio filosófico de Jacques Maritain, “distinguir para unir”, largamente estabelecido em Les Degrés du Savoir. Distinguer pour unir. (passim)   

Metodologia de análise
Com esse objetivo, adotamos uma metodologia de análise que comporta um alicerce, um pilar que lhe dá continuidade no tempo e dois painéis, que o manifestam através das mutações da História: No fundamento, Jesus Cristo. No pilar central, a Tradição da fé, orientada para a Visão, na eternidade. Dos lados, um painel voltado para as expressões passadas da Tradição e do outro, um segundo painel em que se projeta o enriquecimento progressivo da Tradição ao longo dos anos.
O alicerce, sobre o qual se apoia todo o edifício é o encontro com Jesus, Palavra de Deus que é Deus e vem habitar entre nós (cf. Jo,1,1-14) tal como o experienciaram os Apóstolos,  segundo os relatos evangélicos e dos demais escritos apostólicos.
A experiência dos seguidores imediatos de Jesus e das primeiras comunidades, que vieram a ser conhecidas como cristãs, ainda no seio do judaísmo (cf. At 11, 26), é de ordem espiritual. Corresponde ao ensinamento de Teresa: relacionamento interpessoal de ns com os outros no seio da comunidade presidido pela fidelidade à Palavra transmitida pelos Apóstolos.
Teresa, porém, descreve essa mesma experiência, denomnmada mística ou “sobrenatural”, em termos de encontro com Jesus e vivência interpessoal com Deus, segundo a imagem bíblica corrente na tradição medieval das núpcias espirituais, que remonta a Bernardo de Claraval (1091-1153). Esquematicamente, tem como fundamento a íntima união com Deus baseada no encontro com Jesus e  construída em torno do pilar central da busca de Deus em nossa vida, cujo ápice Teresa qualifica matrimônio espiritual e está claramente expressa nas palavras de Jesus.
Experiência que foi diferentemente expressa através dos tempos, desde a dedicação das comunidades primitivas, descritas por Lucas e a que se referem os primeiros “filósofos” cristãos, como Orígenes (±185-±254), por exemplo.
Experiência vivida nos movimentos surgidos no século IV, dos Pais do deserto, revivida no monaquismo, em suas formas ocidentais, institucionalizadas por Bento de Nursia (±480-±547), através dos votos, orginalmente de estabilidade obediência e conversação dos costumes, e difundida no Ocidente por Gregório Magno (±540-604).
No decorrer da Idade Média, com a crescente atenção aos aspectos estruturais da religião cristã, elaborou-se uma teologia dos estados de vida na Igreja. Passa-se então a encarar o monaquismo menos como uma filosofia de vida, centrada na tradição e na experiência, do que como vida religiosa, baseada na instituição e chamada a desempenhar um papel específico no cumprimento da missão apostólica de dar testemunho do Evangelho no seio da cristandade, primeiro, pela vida, quer do culto público, quer da misericórdia, e pela palavra, da pregação e do ensino. A vida religiosa, entendida como estado de perfeição, tem por objetivo final, manifestar, dentro de um determinado contexto histórico, a perfeição da caridade. Teresa vai traçar seu Caminho de perfeição baseada nessa teologia, mas voltando à perspectiva do monaquismo primitivo, dada à percepção que tinha das necessidades da Igreja de seu tempo!
O estado de perfeição se funda no empenho de toda a vida – totalidade e radicalidade – a serviço do Reino. É constituído pelos bispos, que se consagram inteiramente ao serviço da Igreja, e pelos religiosos, que se consagram ao Senhor, na Igreja, pelos votos públicos de pobreza, virgindade e obediência. Na disciplina latina atual, também só são ordenados presbíteros os cristãos que se consagram ao serviço da Igreja pelo celibato, a que se comprometem na ordenação diaconal.
Aos poucos, porém, as exigências dos estados de perfeição se difundem na Igreja, seja na esfera do ministério, como se observa no caso do celibato sacerdotal, seja no surgimento das congregações e associações, regulares ou seculares, em graus variados, num conjunto canonicamente heterogêneo, sob a designação de vida consagrada.
No tempo de Teresa, a grande novidade era a articulação entre as observâncias vinculadas à oração e ao afastamento do século e o testemunho e empenho apostólicos. Novidade introduzida pela Companhia de Jesus, com seu voto de especial obediência ao Papa, que vai estender a vida consagrada a todas as formas de “apostolado” e vinculá-la mais estreitamente ao minstério hierárquico. Dedicada, por isso, a todos os gêneros de apostolado, desde o “apostolado da oração” até o mais secularizado “apostolado da inserção” nos mais diferentes “meios” sociais, tanto da educação como das camadas mais carentes da sociedade.
Esse pilar central, na obra de Teresa como escritora, reformadora e fundadora, desdobra-se em dois painéis laterais: o primeiro painel, olhando para o passado, traz a marca indelével da tradição carmelita, inserida na tradição monástica.
Teresa viveu quarenta anos num mosteiro em que prevalecia a tradição monástica institucionalizada nos votos solenes de observância dos conselhos evangélicos de pobreza, virgindade e obediência. Sobre eles, se estruturava uma vida religiosa, considerada institucionalmente estado de perfeição, na qual, porém, corria-se o risco de se faltar de dinamismo, do frescor do Espirito. Disciplinavam-se os corpos, regulavam-se, sem maior rigor, ao modo da lei, as relações interpessoais, mas não se falava ao coração, deixando, em geral, as pessoas presas às suas idiossincrasias nem sempre santas, quando não contribuía para aquela espécie de monges que são Bento apelidava de sarabaítas, “porque, pelo seu modo de viver se conservam fieis ao século e mentem a Deus pela tonsura” (Regra, c. 1º).
Teresa não o suportou. Influenciada pela tradição mística dos alumbrados, cujas raízes se inserem da Tradição da mística renana (Ekhart, Kempis etc.), entra pessoalmente em choque com o modo de viver do Mosteiro da Encarnação, onde havia professado. Sua saúde espiritual, a intimidade com Jesus a que todas as irmãs, tendendo a perfeição, deviam visar, requeria um engajamento mais pessoal e concreto.
Fosse varão, iria lutar pela Igreja, ameaçada em diversas frentes, a exemplo de seus irmãos, que partiram para as Américas. Sendo mulher confinada, na época, ao ambiente doméstico, sem ceder a uma eventual vocação feminista, o que seria um anacronismo, tudo que lhe restava fazer, parecia-lhe, seria seguir outro caminho. visar pessoalmente à perfeição da caridade, como os primeiros eremitas do Carmelo, pela prática dos votos, de forma efetiva, radical e total.
Dadas as circunstâncias de viver numa sociedade em que se valorizava antes de tudo a honra, pensou num mosteiro em que se favorecesse o contato pessoal entre as irmãs, umas com as outras, na prática efetiva de uma caridade heroica, na pobreza e no despojamento de tudo, inclusive de si mesmo, pela total dedicação de umas às outras. Que antes de tudo as irmãs se amem umas às outas “até o fim”, a exemplo de Jesus (Jo 13,1). Eis o verdadeiro caminho para o encontro com Ele!
Jesus vem a nós no outro. O “mistério” da vida cristã é a vinda de Deus a nós, na intimidade do coração, vivida no encontro com Jesus, realizado:
efetivamente, na relação interpessoal de uns com os outros; sacramentalmente na Eucaristia e
misticamente na união esponsal com o Pai e o Filho no Espírito, que nos é dada no mais íntimo de nós mesmos, na oração.
Com base nesse conteúdo da fé, elaborado pela teologia de seu tempo, Teresa firmou o fundamento  do que hoje conhecemos sob o nome de vida contemplativa, que está na base de toda vida consagrada segundo a doutrina que se começou a elaborar no Concílio (Decreto Perfectae caritatis), aperfeiçoou-se no Sínodo sobre o tema (Exortação Vita consecrata, 1996) e prevalece nos dias de hoje na Carta Apostólica às pessoas consagradas, para a celebração em curso, do Ano da Vida Consagrada (2014 – 2015). Do ponto de vista de teologia da vida religiosa, Teresa é a grande doutora da Igreja, Mãe dos espirituais, tal como a classificou Paulo VI, quando lhe reconheceu o título (1970), conferindo-o pela primeira vez a uma mulher.

O outro painel lateral é o futuro da tradição carmelita. É preciso levar em conta como Teresa ecoou na história nesses últimos 500 anos, para esboçar as direções em que se vai desenvolver a tradição carmelita. A tarefa nos ultrapassa. Procuraremos, no decurso de nossas reflexões, nunca perder de vista a necessidade de sintonizar todo e qualquer eventual enriquecimento da tradição, com a renovação da Igreja, tal como está em progresso  nesses últimos 50 anos.
Trata-se de um dado fundamental para responder ao que os cristãos e, de certo modo todos os homens e mulheres que aspiram pela Verdade, pela Justiça e pela Paz e esperam da Igreja e do Carmelo: que nos empenhemos, de coração, a começar pela família e por nossas relações pessoais, em nos amarmos uns aos outros,  encontrando  assim Deus em nossa vida, para clamar até as periferias da terra, o que disse Jesus aos discípulos de João que o procuraram logo no início de seu ministério: “venham e vejam” (cf. Jo 1,39).

Desenvolvimento
 Dentro dos limites impostos pela vida que levamos, tocados pela vocação monástica na juventude e secularizados depois de um quarto de século, mas tendo mantido, por graça de Deus, até hoje, interiormente, o empenho na busca de Deus, faremos o possível para ecoar com a maior precisão que me é possível, as palavras de Teresa junto a seus filhos.
Ela mesma, ao abordar o discurso sobre o caminho das virtudes para alcançar a perfeição da oração, desculpa-se, de maneira meio canhestra, de falar das virtudes de que não tem sequer o princípio:
Pediram-me que lhes explicasse o princípio da oração: eu, filhas, embora não tenha sido levada por Deus por este princípio, o dessas virtudes, não sei outro (Caminho 16,1).
Como aprendizes da última hora, não nos foi possível nem mesmo abarcar todos os escritos de Tereza. Ajudados pela experiência em campos conexos da Teologia Sistemática e Espiritual, tivemos que optar pela análise de alguns capítulos iniciais do Caminho de Perfeição, em que Teresa expõe o caminho que conhece para chegar à perfeição da oração. Esperamos haver conseguido apontar algumas das principais características de sua pedagogia, enraizada na primitiva tradição carmelita e que nos permitirá, quem sabe, descobrir a direção a seguir em face dos desafios do tempo presente, para que o Espírito do Carmelo não falte ao insistente apelo pela renovação da Igreja em nossos dias.

Assim, depois de lembrar o tempo de Deus que somos chamados a viver nesse ano de graça (01), abramos o Caminho de Teresa (02), situando-o no amplo contexto da tradição monástica historicamente histórica e espiritualmente falando (03). Compreenderemos então o eixo central da tradição teresiana: a caridade fraterna (04) e o caminho das virtudes (05), voltando-nos, enfim, para o presente e encarando o futuro (06), para concluir.

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