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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Teresinha, Doutora do Amor.

*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam
  
Em 1998 Teresa de Lisieux foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa João Paulo II. Já no pontificado de Pio XI que a canonizou em 1925, houve tentativas de conceder a Santa Teresinha o título de Doutora da Igreja. Malgrado sua  profunda devoção à nova Santa que ele chamava de  “Estrela do meu Pontificado”, Pio XI não atendeu a essa expectativa. O motivo? Porque se tratava de uma mulher. Mais tarde, duas outras santas mulheres receberam o título: Santa Teresa de Ávila e Santa Catarina de Sena. Hoje existe um movimento para que uma terceira carmelita, Edith Stein, seja proclamada doutora da Igreja. A condição feminina parece hoje um elemento até favorável para mostrar que a Igreja não é machista.
Doutor da Igreja é um título oficialmente dado pelo Magistério da Igreja a certos escritores notáveis, tanto pela santidade de vida quanto pela importância e ortodoxia de sua doutrina. Sem dúvida, houve outros que ao longo dos séculos seguiram o pequeno caminho, como a Virgem Maria, mas devemos reconhecer que foi Santa Teresinha que lhe deu um brilho e uma influência universal. Pode-se perguntar o que existe de próprio na doutrina teresiana. Vários aspectos poderiam ser apontados, mas o centro é, sem dúvida, o amor. Amor, palavra muitas vezes banalizada. Teresa lhe devolve a sua seriedade ao fazer dele a sua própria vocação.
A caridade deu me a chave de minha vocação. Compreendi que, se a Igreja tinha corpo, composto de vários membros, não lhe faltava o mais necessário, o mais nobre de todos. Compreendi que a Igreja tinha coração, e que o coração era ardente de amor. Compreendi que só o amor fazia os membros da Igreja atuarem, e que se o amor se extinguisse, os apóstolos já não anunciariam o Evangelho e os mártires se recusariam a derramar  seu sangue. Compreendi que o amor abrange todas as vocações, alcançando todos os tempos e todos os lugares. Numa palavra é terno. Então no transporte de minha delirante alegria, pus-me a exclamar: Ó Jesus, meu amor, minha vocação, encontrei-a afinal: MINHA VOCAÇÃO É O AMOR.[1]
Amor será também a última palavra que ela pronuncia na sua agonia: “Oh! eu o amo!... Meu Deus... eu vos amo!...”.[2]  Desde cedo, antes de entrar na sua adolescência, Teresa “sentia o desejo de amar só a Deus, de não encontrar alegria senão nele”.[3]  Já no fim da vida, o mesmo desejo, amadurecido e purificado pelo sofrimento: “Vós o sabeis, ó meu Deus, nunca desejei outra coisa senão amar-vos, não cobiço outra glória. Vosso amor sempre me preveniu desde a infância, comigo cresceu, e agora se tornou um abismo, cuja profundeza não sei calcular. Amor atrai amor. Por isso, meu Jesus, o meu se atira em vossa direção, querendo atestar o abismo que o empuxa, mas infelizmente não representaria sequer uma gota de orvalho, diluída no oceano! Para vos amar como vós me amais, ser-me-ia necessário lançar mão de vosso próprio amor”.[4]
Poderíamos perguntar se Teresa em todas essas declarações de amor, não manifesta uma ilusão de estar abrigada numa torre de marfim, fechada no seu eu que ela projeta num amor de Deus. Não faz lembrar Teresinha menina, que em passeio vespertino, segurando a  mão de seu pai pedia-lhe que a guiasse?  “Então, não querendo ver nada desta terra mesquinha, sem olhar onde punha os pés, erguia a cabecinha bem alto para o ar, e não me cansava de contemplar o azul do céu estrelado!”[5]  A autenticidade do nosso amor a Deus não se manifesta na qualidade do nosso amor aos outros nas realidades concretas onde se desenvolve a nossa existência? Certo, Teresa nunca deixou de sonhar com o dia em que estaria reunida com toda a sua família no Céu. Saudades sublimadas do tempo de Les Buissonnets, ninho de sua infância?  É descobrindo o amor de Deus que Teresa faz o caminho de volta, da fugacidade do tempo e de todas as coisas para a preciosidade do momento presente:

“Que me importa, Senhor, se no futuro há sombra?
Rezar pelo amanhã? Minha alma não consente!
Guarda meu coração puro! Cobre-me com tua sombra
     Agora, no presente!”

Se penso no amanhã, temo ser inconstante,
vejo nascer em meu coração a tristeza e o enfado.
Eu quero, Deus meu, o sofrimento, a prova torturante
            Agora, no presente!”[6]
Teresa saiu do seu eu com seus inúmeros desejos de tira-gosto. O que sobrou foi o desejo do desejo de amar a Deus.  Suas três irmãs de sangue, carmelitas no mesmo mosteiro, se reuniam junto à cama da caçula da família. Escutemos o diálogo: “O que você quer que digamos hoje? ...A melhor coisa seria não dizer absolutamente nada, porque, para dizer a verdade, não há nada para dizer. Tudo já foi dito, não é? Teresa fez um lindo sinalzinho com a cabeça: Foi!  ... Sofro somente um instante. Nós nos desanimamos e desesperamos apenas por pensarmos no passado e no futuro”.[7]  Quem tem consciência de morar no amor de Deus, tem outra maneira de relacionar-se com o tempo. Não faz as coisas para poder fazer outras. Ele é o que faz.[8] 
   A confiança e o abandono nas mãos de Deus e o sentir-se amada por Ele é em Teresa a fonte do amor aos outros. Deus é a única opção de Teresa. Mas o amor entre os dois não é um diálogo fechado. O mundo está presente nele. É um diálogo no tempo e na história que encontra a sua fonte no mistério da Encarnação, e, de modo denso, no mistério da Paixão de Cristo.
“Como a torrente, lançando-se com ímpeto no oceano, arrasta após si tudo quanto encontra de passagem, assim também, ó meu Jesus, a alma que imerge no ilimitado oceano de vosso amor, arrebata consigo todos os tesouros que possui... Senhor, vós o sabeis, não tenho outros tesouros senão as almas que vos aprouve unir à minha. Tais tesouros, fostes vós que mos confiastes”.[9]
Teresa não seleciona as almas. É verdade que ela pensa nos pequenos. Ficaria até feliz se Deus pudesse encontrar almas que, em relação a ela, ganhassem em pequenez porque o critério será sempre a misericórdia divina. Pois foi do agrado do Pai revelar estas coisas aos pequeninos (Mt 11, 26).  Teresa recorre freqüentemente às cartas de São Paulo. Também no tema da misericórdia de Deus, ela se reconhece no Apóstolo dos Gentios:
“Jesus não chama os que disso são dignos, mas o que são de seu agrado, ou conforme diz São Paulo: ‘Deus tem compaixão de quem lhe apraz, e faz misericórdia a quem Ele quer aplicar misericórdia. Isto, portanto, não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus que se compadece”(Rm 9, 15-16).
O pensamento de Teresa não é arbitrário, mas atinge o mistério insondável da salvação. Por isso mesmo descobre a sua vocação de amor no coração da Igreja, como uma vocação profundamente apostólica:
“Tenho vocação de ser apóstola... Quisera percorrer a terra, apregoar teu nome, e cantar em terra de infiéis tua gloriosa Cruz. Mas, ó meu Bem-Amado, uma única missão não me seria bastante. Quisera anunciar, ao mesmo tempo, o Evangelho pelas cinco partes do mundo até as ilhas mais remotas... Quisera ser missionária não só por alguns anos, mas quisera sê-lo desde a criação do mundo, e sê-lo até a consumação dos séculos... Mas, acima de tudo, quisera, ó meu amado Salvador, por ti quisera derramar meu sangue até a última gota...”.[10]
De novo surge a tentação do ceticismo para quem a linguagem e a empolgação  de Teresa pode parecer uma fuga da vida cotidiana que ela levava no Carmelo de Lisieux. Ambiente em que não faltavam relacionamentos eivados de autoritarismo, mesquinhez e ciúme, que facilmente aumentam o volume da sua ressonância afetiva quando o espaço do mosteiro é reduzido pelo clausura, mas habitado por um número não pequeno de religiosas. As “alfinetadas” de que Teresa fala, fazem sonhar com horizontes mais amplos.  Mas o horizonte de Teresa não é feito de um sonho, mas é “o próprio Jesus, esta divina realidade” como ela sublinha. Ainda postulante, ela escreve para sua irmã Celina: “Antes de morrer pela espada, morramos às alfinetadas”.[11]  As renúncias não procuradas que a cada momento se apresentam no relacionamento com as irmãs, principalmente no trato com as noviças por cuja formação Teresa é responsável, fazem-lhe descobrir e também ensinar melhor o seu pequeno caminho de amor. Teresa não quer saber de gestos heróicos de santidade. Para ela o ponto de referência é Jesus, que ela quer seguir amando. Jesus, o Filho de Deus que veio para fazer a vontade do Pai. Vontade que consiste em dar ao mundo o Filho, e nele o amor do Deus-Trindade. Um mês antes de sua morte, perguntaram-lhe se ficaria contente se soubesse que dentro de alguns dias iria morrer, ou se preferiria receber um aviso de que o seu sofrimento iria aumentar durante um longo período ainda. A resposta de Teresa: “Oh! não, absolutamente, não ficaria mais contente. A única coisa que me deixa contente é fazer a vontade do bom Deus”.[12]  Quando Teresa fala, reagindo às observações das suas irmãs que cuidam da enferma, as suas palavras não armam ao efeito. Seus comentários às admiradoras de sua paciência, beleza ou santidade, revelam um senso de humor que desloca a atenção para o seu Amado: “Bom, tanto melhor! Mas gostaria que o bom Deus o dissesse”.[13] 
* Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.



[1] História de uma alma IX, 254 (Manuscrito B 3v)
[2] CA 30.09
[3] História de uma alma IV 113 (Manuscrito A 36)
[4] Ibid.  XI 336 (Manuscrito 35)
[5] Ibid. II 62 (Manuscrito A 18).
[6] Poesia 5 Meu canto de hoje.
[7] CA 19.08. 8.10.
[8] A expressão é de C.S. Lewis (1898-1963) na sua autobiografia espiritual: “I am what I do”.
[9] História de uma alma XI 334-335 (Manuscrito C 34).
[10] Ibid. IX 251 (Manuscrito B 3).
[11] CT 86.
[12] CA 20.08.2.
[13] CA 3.92.

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