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segunda-feira, 14 de julho de 2014

CARMELITAS: Dedicação ou padroado mariano.

Frei Emanuel Boaga, 0.Carm,

O relacionamento mariano dos Carmelitas com Nossa Senhora, através do Padroado, está sustentado por elementos primordiais, próprios da mentalidade medieval do feudalismo e, mais particularmente, por influência das Cruzadas, que os guiava em sua busca de vida eremítica no Monte Carmelo. Este dinamismo os conduziu à escolha do ‘Padroado’, através da dedicação a Nossa Senhora da igrejinha construída em sua honra no Monte Carmelo. De fato, tal dedicação indica claramente a escolha feita pelos Carmelitas, de Maria a Mãe de Deus, como sua Patrona, tornando-se tal opção, uma orientação espiritual no sentido de serviço ou, melhor, de ‘obsequium’, levando-os a se colocarem inteiramente á disposição da Senhora e a se consagrarem para viver em ‘obsequium’, não só de Jesus, mas também de Maria.
Recentes estudos nos indicam, nas origens, a presença dos seguintes elementos que caracterizam a devoção mariana dos Carmelitas:
O forte cristocentrismo que informa toda a vida e devoção mariana dos primeiros Carmelitas;
A consciência do papel de Maria, a Mãe do Senhor (a Domina Loci) no Mistério de Cristo e da Igreja, e a reflexão sobre as ligações entre os mesmos eremitas e o Monte Carmelo, alimentadas por referências bíblicas e tradições locais;
A inspiração para a própria vida espiritual, buscada na referência à virgindade de Maria, em seu ser cheio de beleza, a indicar a ‘via pulcretudine’
A escolha de Maria, a Virgem e Mãe de Deus, a Senhora do lugar, como Patrona, através da dedicação a ela da primeira igreja no Monte Carmelo, com as conseqüências que tal opção comportava: o serviço ou vassalagem espiritual; a correspondente proteção-mediação, nas dimensões ascendente e descendente, conforme o Padroado medieval.
Com este húmus inicial foi desenvolvido, a seguir, através de um processo de idealização das origens marianas, uma relação carregada de atenção, de afeto, de ternura e de grande familiaridade com Maria. Os conceitos iniciais do Padroado vêm retomados e recebem explicitações várias, com acentuação de conteúdos específicos, formando-se assim um rico patrimônio de espiritualidade mariana.
Entre os vários gestos marianos do século XIII que exprimem este processo de idealização, encontra-se bem ao centro a atenção sobre dois aspectos: o uso do nome de Maria incluído na fórmula da profissão religiosa e a escolha do título mariano para a Ordem. A inserção do nome de Maria na fórmula da Profissão é um uso já registrado desde as Constituições de 1281.Entretanto, acredita-se que pode ser de época anterior. A finalidade desta inserção visa exprimir a dedicação a Maria, mas também o desejo de se tornar parte viva da reforma da Igreja. Era um uso comum nas Ordens que assumiam o compromisso direto com esta reforma. Tal costume nos  revela a dinâmica da experiência originária dos Carmelitas no contexto da Igreja de seu tempo e nas prospectivas seguintes.
Da mesma dedicação da igreja carmelitana a Maria, nasce, por acepção popular (1250) ou por motivação dos próprios Carmelitas, o título mariano da Ordem: Irmãos (quer dizer, religiosos) da Bem-aventurada Virgem Maria ou ‘fratres virgulati’. Este titulo está documentado pela primeira vez no ano 1252, na forma de ‘Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus do Monte Carmelo’. por concessão do Papa Inocêncio IV. Há referências anteriores em uma carta do mesmo Pontífice datada entre os anos de 1246 e 1247, enviada ao Bispo de Londres. No documento da fundação de Trapani (1250) já são chamados de ‘Fratres Sanctae Mariae de Monte Carmelo’.
A questão que ainda não foi completamente esclarecida diz respeito à origem deste título. Conforme uma tradição, surgida pela primeira vez em 1337, tal título nasce do uso feito pelo povo de assim chamar os Carmelitas que viviam no Wadi ain es-Siah para distingui-los dos eremitas do mosteiro grego vizinho que se denominava de Santa Margarida. É uma suposição que pode ser provável, não porém segura. É que realmente, o título mariano deve ter sido escolhido pelos mesmos eremitas e por motivos provenientes da espiritualidade de sua própria vida. Esta afirmação faz pensar em alguns testemunhos implícitos e freqüentes encontrados nos escritos do século XIV, ainda que o confronto das datas com o título oficial concedido pela bula em 1252, coincida com aquele do uso popular acima referido.
Este título mariano foi contestado por algumas outras Ordens. Os Carmelitas se defenderam. Originou-se então outra longa e trabalhosa controvérsia, que teve seu ponto culminante no ano 1374 quando o Carmelita João Horneby defende, com sucesso, tal titulo mariano contra o Dominicano João Stokes na Universidade de Cambridge (Inglaterra), saindo vitorioso da mesma e recebendo da Universidade uma declaração que confirmava o título da Ordem. Em 1379 o Papa Urbano VI deu a palavra definitiva sobre a questão, concedendo uma indulgência àqueles que chamassem os Carmelitas com o seu titulo mariano.
Foi uma polêmica muito útil que teve seu mérito: levou os Carmelitas ao aprofundamento das relações com Maria, considerada a própria Patrona. Disto temos profundas lembranças nos escritos da época e referências explícitas nos documentos legislativos e litúrgicos. A especificação mariana de Virgo Dei Genitrix, no título oficial da Ordem, como aparece nas bulas pontifícias, provêm claramente destas reflexões e da polêmica com aqueles que chamavam os Carmelitas de Irmãos de Santa Maria Egipciaca, a pecadora penitente. Muitas vezes foi retomada a luta contra o título mariano. Algumas formas de oração e alguns textos das Constituições as recordam. Esta questão do título e a importância dada a ele, não constitui um mero jogo de palavras, mas, para a mentalidade medieval, era questão essencial pois, vinculada à própria identidade. O nome era uma expressão desta, comunicando algo essencial ao ser. 
Há ainda um outro elemento que faz parte do conceito medieval de pertença à Virgem: a fundação da Ordem em sua honra. O primeiro a expressar tal convicção foi o prior geral Pedro de Millaud, em carta de 1282 ao rei da Inglaterra Eduardo I. A mesma opinião, alguns anos mais tarde, está exarada nas atas do Capítulo Geral de Montpellier. Daí para a frente, os autores da Ordem, em várias ocasiões, e talvez em resposta a polêmicas com outros religiosos, afirmam que o serviço a Maria é parte integrante da vida carmelitana. Para alguns destes autores foi fácil também afirmar a convicção de que o ‘Carmelo é todo de Maria’ bem como atribuir à mesma Virgem Maria a fundação da Ordem.
Ao lado de todas estas referências marianas podem ainda ser recordados alguns fatos: a dedicação a Nossa Senhora das Igrejas da Ordem, erigidas no curso dos séculos XIII-XIV; a intenção ou finalidade mariana presentes nas diversas fundações, como ocorreu, por exemplo, em Milão e em Tolossa; as prescrições litúrgicas em uso entre os séculos XIII-XIV. Faz parte deste conjunto de pensamentos a compreensão simbólica que os Carmelitas tinham do próprio hábito, como sinal exterior de uma realidade mariana viva (cfr. quadro sobre sentido da capa).  São características e sinais vitais do próprio caráter mariano para o homem medieval.

Familiaridade de vida

O sucessivo desenvolvimento da característica mariana conduz as primeiras gerações carmelitanas a verem também na Virgem Maria a forma ideal da encarnação de seu ‘propositum vitae’. Nasce assim a exemplaridade da virgindade de Maria, não apenas vista como isenção do pecado (condição para o encontro com Deus), mas assumida como disposição radical para a união e escuta da Palavra. O ulterior aprofundamento da natureza da devoção mariana, realizado por alguns autores espirituais, conduz a uma familiaridade de vida com Maria a fim de seguir melhor a Cristo.
O primeiro a dar forma orgânica aos elementos marianos da Ordem foi João Baconthorp no principio do século XIV. A sua doutrina pode ser sintetizada em dois pontos:
Tudo o que o carmelita faz, deve fazê-lo para honra e glória de Maria porque, consoante a vontade divina, esta é a razão da existência de sua Ordem. Maria é de fato a "domina loci" (isto é, a Senhora do lugar, ou seja, do Carmelo).
 a vida do carmelita exige que ele imite Maria na prática de todas as virtudes porque a conformidade é a melhor glorificação, e tender à mesma é manifestação de amor que, por sua vez, aumenta sempre mais o amor.
A ideia da exemplaridade de Maria, expressada forte e amplamente por Baconthorp, é sucessivamente retomada por muitos autores até ser desenvolvida como um viver em conformidade com Maria, especialmente em relação à virgindade. Esta relação é a base para a consideração de Maria como irmã, e, portanto não somente tomada como um modelo a imitar. Ela é doce presença na vida do Carmelita (cf. afirmação do livro Formação dos primeiros monges).
A reflexão mariológica chegou a ponto de afirmar que, não somente o Carmelo é todo de Maria, mas que, a própria Maria pertencia ao Carmelo. Tal idéia vem consignada no título ‘Virgo Carmelitana’ como se Nossa Senhora fosse membro efetivo da Ordem. Esta gentil expressão, freqüente não apenas nos Fioretti do Monte Carmelo de Nicolau Calciuri (+1466) e nos escritos de Arnoldo Bostio (+ 1499), está também presente na iconografia. Nas rubricas litúrgicas passou a substituir-se o termo santa pela palavra Virgem, referindo-se a Nossa Senhora.
Junto ao tema da virgindade de Maria, deu-se também ênfase à sua pureza. Os Carmelitas consideravam a Imaculada, a ‘tota pulchra’, a ‘Virgo Virginum’ como exemplo para sua disponibilidade a Deus e vida de união com Ele. O culto à Virgem Puríssima é forte ajuda à dimensão contemplativa. É uma continuação do precedente à Virgem da Anunciação, já difundido no século XIII. A pureza de Maria atrai Deus a seu coração, na Anunciação. Os Carmelitas, se não a podem imitar neste privilégio singular, podem porém imitá-la em sua união com Deus por meio da oração e na fé para escuta da Palavra do Senhor. Maria, modelo de perfeição no caminho espiritual,  é assim tomada por S. Teresa de Jesus e S. João da Cruz. Já Santa Maria Madalena de Pazzi (+1607) utiliza a palavra ‘puridade’ [total pureza do ser] para indicar com ela a ‘fonte da santidade de cada ser’. Explica da seguinte forma esta idéia: na pureza da Virgem Maria brilha a beleza que Deus concedeu a ela. Nesta pureza o ser humano encontra uma mensagem: ela é reflexo da disponibilidade a Deus, da conformidade com sua vontade; é testemunho, fecundidade  e profecia.
No final do século XV Arnold Bostio elaborou uma primeira síntese da devoção mariana da Ordem. Retomou os elementos da tradição precedente (infelizmente dando-lhes conotação  histórica, o que hoje não resiste à crítica), acrescentando contudo elementos de ordem espiritual.  Lembra que, além da oração e da imitação para uma autêntica vida mariana, faz-se necessário o contato permanente com a ‘Mãe terníssima’. Por isso, o amor da Mãe deve ser sempre e em toda parte a inspiração de todas as ações do Carmelita que, consagrado deste modo, existencialmente, a Maria, oferece-se inteiramente a Deus.
As ideias de Bostio foram reproduzidas e se difundiram, graças a outros autores. Dentre eles encontramos no séc. XVII Frei Marcos da Natividade (+1696), que inseriu, na sua célebre obra dos Diretórios para Noviços, a doutrina de Bostio, explanando melhor a pertença do Carmelita e de todos os seus interesses à Virgem Maria e como oferecê-los, por suas mãos, a Deus.
O ápice de todo o desenvolvimento mariano da Ordem, no passado, é constituído pelos ensinamentos de Frei Miguel de S. Agostinho e da sua discípula Maria Petyt, que viveram no século XVII. De modo especial, no seu célebre tratado sobre a ‘Vida Marieforme’, Miguel de S. Agostinho explica o seu pensamento focalizando-o em três centros de interesse:
- O progresso de uma clara e breve doutrina ascético-mística, apoiada em bases teológicas (maternidade divina e espiritual, mediação, realeza), para conduzir à conformidade de vida com Maria mediante uma constante recordação sua (como a prática da presença de Deus), e um esforço sincero para reproduzir suas virtudes.
- A contribuição nova (embora já proposta por algum autor precedente) sobre a participação na vida afetiva de Cristo para com Maria. Isto é apresentado explicando o texto GaI 4, 6. Traduzindo na prática: o amor a Nossa Senhora não é apenas uma imitação do amor de Jesus a ela, mas também a sua continuação através da nossa participação na vida afetiva de Jesus para com Maria (cfr. Tratado, cc. 13,14,15).
- A descrição da união mística com Maria e com Deus, tendo presente os exemplos admiráveis de Maria Petyt, a sua discípula. Esta união mística é também lembrada por outros autores Carmelitanos, como a venerável Serafina de Deus (+1699), Maria de S. Pedro (+1848), Teresinha do Menino Jesus, e, antes de P. Miguel de S. Agostinho, Balduino Leersius (+1483), Teresa de Jesus, e Madalena de Pazzi.
O         caráter mariano, no decurso dos séculos, é explicitado concretamente em elementos litúrgicos e devocionais: oficio em honra de Nossa Senhora, antífonas marianas, festas marianas, orações, devoções particulares, etc, e, finalmente, com o escapulário, que assume também o papel de mediação popular da consagração a Maria e da sua proteção. Esta mediação popular (conforme uma primeira análise das pregações e dos estatutos de confrarias, etc.) consubstancia-se em três fortes realidades: a oração mariana, a prática sacramental e o exercício das obras de misericórdia.
Em época recente a imitação das virtudes de Maria tem sido assumida como a melhor forma de devoção mariana (cf. Teresa do Menino Jesus). Busca-se para esta devoção um fundamento bíblico (cf. Elisabeth da Trindade); olha-se para Maria como aquela que indica o caminho para a santidade (cf. Edit Stein) e é feito a cada Carmelita o convite para ser como Maria ‘Theotócos’, ou seja, estar com ela em gestação, para levar Cristo ao mundo (Tito Brandsma).

Os vários desenvolvimentos desta intensa reflexão mariana são reforçados pelos apelativos com que é denominada Nossa Senhora: Patrona, Senhora do lugar, Virgem Puríssima, Irmã, Mãe (OCD: mais Rainha) e Honra do Carmelo, Flor do Carmelo, Nossa Senhora do Escapulário e tantos outros carinhosos títulos e canções que lhe são dedicados, ao longo do caminho carmelitano.

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