A
ressurreição não é, como supõem os saduceus, um retorno ao passado. Pelo
contrário, é a entrada em uma outra vida. Ressuscitar não é voltar a ser como
antes, é voltar a ser como depois. Não é tornar-se outro, é tornar-se
outramente. Mas atenção! Não são apenas os saduceus do tempo de Jesus que
pensam dessa maneira. Seu raciocínio é o de muitos cristãos de hoje, que
imaginam o além como aqui e que se representam a vida após a vida a partir dos
conceitos materiais que correspondem à sua realidade e que eles transportam
para o além, para o céu.
A
reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada
no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 32º Domingo do
Tempo Comum – Ciclo C do Ano Litúrgico (10 de novembro de 2013). A tradução é
de André Langer.
Referência bíblica:
Evangelho: Lc 20,27-38
Eis o texto.
Estamos
nos aproximando do final do ano litúrgico. Nós acompanhamos Jesus na sua subida
para Jerusalém a partir do Evangelho de Lucas. Eis que hoje o Jesus do
Evangelho de Lucas afirma que o nosso Deus não é o Deus dos mortos, mas dos
vivos (Lc 20,38). Nós somos prometidos, portanto, não à morte, mas à Vida e
esta Vida já começou. Isso deveria transparecer em nossos rostos de cristãos e
de cristãs; nós devemos viver já em ressurreição. Nietzsche dizia: “Eu
acreditarei nos cristãos no dia em que eles tiverem semblantes de
ressuscitados”.
1. O que é a Ressurreição?
Muitas
pessoas, hoje, mesmo entre os cristãos, não acreditam na Ressurreição. Para
alguns, a morte é o fim de tudo e a Ressurreição é apenas a resposta à recusa
de morrer e o reflexo de uma ignorância persistente que se opõe à realidade
científica. Outros, mesmo entre os cristãos, acreditam na reencarnação, isto é,
nas sucessivas vidas que permitem às almas se purificarem, emprestando
sucessivos corpos, até a divinização. Pessoalmente, acredito na Ressurreição e
sei que a minha fé não é fruto da minha ignorância e que ela não se opõe à ciência.
É evidente que a minha fé não é uma certeza, e é melhor que seja assim, porque
os crentes seguros de si mesmos, são, muitas vezes, integristas e extremistas
que impõem sua religião a todo o mundo... O que é contrário ao Deus de Jesus
Cristo.
Bernanos
dizia que sua fé estava cheia de dúvidas: “24 horas de dúvidas, menos 1 minuto
de esperança”. Mas que esperança! Uma esperança a toda prova, dizia Doris
Lussier: “Eu não digo: eu sei; eu digo: eu creio. Crer não é saber. Eu saberei
quando verei, como os outros. Se eu tenho o saber... E, além disso, depois de
tudo, como eu disse um dia a um amigo descrente: tu sabes, nossas respectivas
opiniões sobre os mistérios do além não têm grande importância. No que nós
acreditamos ou não, isso não muda absolutamente nada da verdade da realidade: o
que é e..., e o que não é não é, um ponto, é tudo. E temos de conviver com
isso”.
Por
outro lado, se eu li bem o evangelho de hoje, me dou conta de que a
Ressurreição não está na ordem da materialidade; ela não é, sobretudo, a
reanimação de um cadáver que continua a viver como antes. E para provar isso,
Jesus diz aos saduceus que tentam provar pelo absurdo a ideia da ressurreição,
falando da lei judaica do levirato (Dt 25,5-6) que obriga o irmão de um morto a
esposar a viúva desse para dar uma descendência ao seu irmão: “‘Mestre, Moisés
escreveu para nós: Se alguém morrer, e deixar a esposa sem filhos, o irmão
desse homem deve casar-se com a viúva, a fim de que possam ter filhos em nome
do irmão que morreu. Ora, havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu, sem ter
filhos. Também o segundo e o terceiro casaram-se com a viúva. E assim os sete.
Todos morreram sem deixar filhos. Por fim, morreu também a mulher. E agora? Na
ressurreição, de quem a mulher vai ser esposa? Todos os sete se casaram com
ela!’” (Lc 20,28-33).
Jesus
denuncia esta concepção materialista da Ressurreição. Os saduceus não se dão
conta de que sua maneira de abordar o problema supõe que Deus se serve do mesmo
raciocínio que aqueles nos quais eles mesmos se trancaram. O exegeta francês
Jean Debruynne escreve: “Eles querem fazer Deus entrar a qualquer preço em suas
adições e subtrações. Mas a ressurreição não é, como supõem os saduceus, um
retorno ao passado. Pelo contrário, é a entrada em uma outra vida. Ressuscitar
não é voltar a ser como antes, é voltar a ser como depois. Não é tornar-se
outro, é tornar-se outramente”.
Mas
atenção! Não são apenas os saduceus do tempo de Jesus que pensam dessa maneira.
Seu raciocínio é o de muitos cristãos de hoje, que imaginam o além como aqui e
que se representam a vida após a vida a partir dos conceitos materiais que
correspondem à sua realidade e que eles transportam para o além, para o céu.
Quantas vezes, sem se dar conta, os cristãos emprestam a Deus os sentimentos
que são os seus, os desejos que habitam neles, os pensamentos que os
tranquilizam e os julgamentos que fazem a balança pesar a seu favor. A
Ressurreição é certamente uma vantagem em relação ao que se vive aqui e agora,
e o importante não é saber, mas crer e esperar. No limite, mesmo que não
houvesse nada depois da morte, poderíamos continuar a crer e a esperar. É
exatamente o que uma mulher jovem com câncer disse a um jornalista que lhe
dizia: “Se não há nada após a morte, você acreditou por nada, inutilmente!”.
Ela respondeu: “Se a fé meu ajudou a viver bem com o meu marido e os meus
filhos, e se ela me ajuda a morrer bem, sem me revoltar, em que terei perdido
meu tempo? Uma coisa é certa: eu não terei acreditado inutilmente!”.
2. Ressurreição pessoal e coletiva
Nós
não estamos sozinhos na Terra; somos coletividade, comunidade, humanidade. A
nossa vida nós a recebemos uns dos outros. Nós somos seres de relação, de
comunicação, de comunhão. Estamos em relação com toda a humanidade. É por isso
que a Ressurreição não é somente pessoal; ela também é coletiva. São Paulo, na
primeira Carta aos Coríntios, dizia: “Ora, vocês são membros dele, cada um no
seu lugar” (1 Cor 12,27). “Se um membro sofre, todos os membros participam do
seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros participam de sua
alegria” (1 Cor 12,26). Em seu livro ‘Céu! Para onde vamos?’, André Myre
escreve: “Nós fazemos parte uns dos outros, tanto para o bem como para o mal,
para ser salvos ou para nos perdermos sozinhos. Se apenas um está perdido,
então todos estão perdidos. Se um só é salvo, então todos são salvos. Ora,
Cristo ressuscitou, portanto... Daí a grande serenidade dos primeiros cristãos.
Eu contribuo para a salvação dos outros e eles para a minha”.
Portanto,
como cristãos, somos responsáveis uns pelos outros. André Myre acrescenta:
“Nada do que os outros fazem pode me deixar indiferente. Quando estoura uma
guerra, é a minha ressurreição que está ameaçada. Quando eu mato uma pessoa, é
a sua ressurreição que está ameaçada. Quando a igualdade entre os homens e as
mulheres é afetada, é o corpo da humanidade ressuscitada que é rompido. Quando
um povo se liberta ou a democracia progride, é a esperança da minha
ressurreição que aumenta. Quando um santo se levanta entre nós, é a nossa
salvação que se afirma”.
E
o julgamento em tudo isso? É uma realidade importante que precisamos viver
desde agora. Nossa humanidade é ferida pelas injustiças, pela opressão, pelas
guerras. Nós devemos, pois, trabalhar para restabelecer a justiça e restaurar a
paz, para que a Ressurreição ecloda no grande dia. Para chegar lá, precisamos
reconhecer nossas falhas e repará-las, nossos erros e perdoá-los. Sem isso, a
Ressurreição não pode ser plenamente alcançada. André Myre chama esse tempo de
tomada de consciência, de arrependimento, de reparação e de perdão, o
purgatório. Ele escreve: “O purgatório só faz sentido sobre o pano de fundo de
um grande amor, por parte da grande humanidade reunida em um só corpo e tomando
consciência de repente do grande amor de Deus por ela. O mal se pagará, mas o
amor vencerá. Enfim.”
A
solidão corresponde, na perspectiva da responsabilidade coletiva da
Ressurreição, ao que é o inferno: “E o inferno?, escreve André Myre. Ele terá
sido uma grande solidão, solidão dos idosos ou dos abandonados, solidão dos
drogados, solidão dos políticos felizes por fazerem guerra, solidão dos
financistas ou dos homens de negócios sozinhos na cúpula e sem vínculos com
ninguém, solidão dos homens religiosos que condenam os outros, em nome de Deus.
Há tanta solidão!” Mas o inferno, se realmente existe, não pode ser eterno:
“Será possível que um ser humano decide excluir-se eternamente da humanidade?
Talvez, se ele foi abandonado à sua solidão. Mas se Deus é Deus, como poderá
não intervir? Afinal, essa será a felicidade de todos os outros. Quem já amou
ou foi amado ou desejou ser amado jamais estará perdido”. Há matéria para
reflexões!
Para
terminar, podemos dizer com André Myre: “Morrer não é perder tudo, mas
encontrar tudo”. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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