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sexta-feira, 26 de abril de 2013

*JESUS NA ESPIRITUALIDADE CARMELITANA.


Frei Donald W. Buggert O.Carm.

                   (Em "The Land of Carmel" por VV.AA.)  Homenagem ao Pe. Joaquim Smet O.Carm.  Institutum  Carmelitanum - Roma 1991

              A Ordem do Carmo tem sua origem num grupo de eremitas ocidentais que peregrinaram para a Terra Santa e se estabeleceram perto da Fonte do Profeta Elias, no Monte Carmelo. Entre os anos de 1206 e 1214 estes eremitas dirigiram-se a Alberto, Patriarca de Jerusalém e Legado do Papa para a Província de Jerusalém, com o pedido de uma "forma de vida", que viria a ser conhecida como a Regra de Alberto. Esta Regra, como desejo mostrar, é totalmente CRISTOCÊNTRICA. Este cristocentrismo informou continuamente a herança espiritual do Carmelo, como se vê, por exemplo, nos escritos de Teresa de Ávila e de João da Cruz.
              Pretendo articular este cristocentrismo no Carmelo hoje, sob a luz do pensamento cristológico contemporâneo. O meu artigo consta, portanto, de três partes:
a) O cristocentrismo da Regra de Alberto;
b) A reflexão cristológica contemporânea;
c) A rearticulação do cristocentrismo da Regra.

O CRISTOCENTRISMO DA REGRA DE ALBERTO

              A regra de Alberto é conhecida pela sua brevidade. Mesmo assim contém doze referências diretas a Cristo e, pelo menos, oito indiretas. Várias teorias, ao refletirem sobre o centro ou coração da Regra, propuseram, por exemplo, a sua dimensão eremítico-contemplativa ou a comunitária. Sem querer entrar neste debate, proporia que anterior a qualquer outra interpretação da Regra está a centralidade da Pessoa de Jesus Cristo e o caminhar pelas suas pegadas como discípulos.
              Em resposta ao pedido de uma forma de vida feito pelos eremitas do Carmelo, Alberto no próprio Prólogo, como uma grande meta, determinou o projeto fundamental do verdadeiro Carmelita, a saber, "caminhar pelos passos de Cristo". Na Regra, ele delineia o modo específico como estes eremitas tinham de viver a vocação Cristã universal de "uma vida de vassalagem a Jesus Cristo". Este projeto cristocêntrico não é, certamente, só para aqueles primeiros Carmelitas e seus seguidores. No entanto, é este projeto que deve informar aquela maneira de vida cristã proclamada nos dezoito capítulos e ainda no Epílogo da Regra. Em todos os aspectos das suas vidas os eremitas devem "in obsequio Jesu Christi vivere".
Este obsequium torna-se para eles "a norma suprema e fundamental".
Neste ponto concordo plenamente com a posição de Valabek:
              "Santo Alberto toca imediatamente no essencial: os religiosos não estão em primeiro lugar atados a um bem escrito e bem redigido e planejado modo de vida, mas estão sim atados a uma Pessoa: Jesus Cristo. A regra de fato está penetrada por esta Pessoa de Cristo tanto como Palavra quanto como Sacramento".
              Qualquer outra coisa que os Carmelitas sejam ou não sejam, devem em primeiro lugar ser Cristãos, seguidores de Cristo. Seguir pelas pegadas de Cristo torna-se, portanto, a subjacente hermenêutica da Regra e não apenas um acréscimo casual. Como  hermenêutica não somente informa o conjunto da Regra, mas também fornece a sua chave de interpretação. Além disto, precisamente como chave de interpretação, o seguir pelos passos de Cristo deve funcionar através das linhas de uma hermenêutica de indícios, uma hermenêutica que se coloca em atitude de julgar e corrigir toda interpretação passada e presente da Regra e fornecer orientação para a sua rearticulação progressiva.
              Acentuei que o projeto subjacente e, portanto hermenêutico, da Regra de Alberto está expresso no Prólogo, isto é, caminhar no seguimento de Jesus Cristo: in obsequio Jesu Christi vivere. Sendo hermenêutica subjacente, cada um há de esperar que este projeto cristocêntrico informe a Regra totalmente. Realmente é assim. Para apreciar o cristocentrismo da Regra deve-se primeiramente retornar ao texto e chegar ao seu autor e ao seu contexto eclesial.
              Antes da sua nomeação para bispo de Bobbio em 1184, Alberto foi Cônego Regular da Santa Cruz de Mortara. Esta formação como Cônego Regular proporcionou-lhe a leitura constante das Sagradas Escrituras e a devoção à Cruz de Cristo. Além disto, como Patriarca de Jerusalém e Legado Pontifício para a Terra Santa, Patrimônio de Cristo, tinha ele um compromisso especial com o obsequium da Cruz de Cristo. Diante destes antecedentes a cristocentricidade da Regra viria sem surpresa.
              No contexto eclesial do fim do século XII, surgiram na Europa  novos movimentos espirituais, que criticavam a opulência do Clero; os monjes voltavam às Escrituras e conseqüentemente à centralidade da imitação de Cristo e ao estilo apostólico de vida da Comunidade de Jerusalém. Uma forma deste despertar evangélico era o movimento dos leigos, a peregrinação dos eremitas consagrada à penitência, a pobreza evangélica e a visitação aos Lugares Santos.
              Além disso, este mesmo período foi testemunha das cruzadas, que se incumbiram de recuperar a "Terra de Cristo". Contudo, depois da derrota de Hatin em 1187 e com a eleição de Inocêncio III em 1189, a razão teológica para visitar a Terra do Senhor prevaleceu sobre todos os outros motivos, fossem eles militares ou comerciais.
De todos os lugares santos que os eremitas peregrinos da Europa visitaram, a Terra de Jesus tornou-se a mais popular. Lá poderiam eles caminhar "pelas pegadas de Jesus" e, na penitência, imitar os seus sofrimentos e a sua morte.
"Pela renúncia a todos os bens materiais, numa pobreza voluntária, buscavam renovar a vida cristã, seguindo a Jesus Cristo através da imitação do modo de vida dos Apóstolos" (Cicconetti).

Além disto, como observa (o mesmo) Cicconetti:
              "O fato real de estar na Terra Santa encerrava em si a decisão de lutar por Jesus Cristo, não necessariamente no sentido militar, mas no serviço pessoal, na guerra espiritual. De fato, a Terra Santa era considerada "O Patrimônio de Jesus Cristo" e a sua herança ou o seu Reino. A pessoa que lá morasse era por um título especial, seu feudatário, um vassalo no seguimento de Cristo, a quem devia fidelidade e serviço leal".
              Um dos grupos de eremitas leigos do Ocidente de vida evangélica, que se dirigiram para a Terra de Cristo e retornaram à vida apostólica primitiva, para ajudar a reconquistar o Patrimônio de Cristo eram os eremitas do Carmelo, que suplicaram a Alberto uma "formula vitæ", que em si mesma, além disso, correspondesse também ao seu anteriormente delineado estilo de vida (propositum) já vivido por eles, isto é, uma vida dedicada ao seguimento de Cristo, especialmente do Cristo Crucificado, e vivida em imitação da primitiva Comunidade de Jerusalém. Como afirma Cicconetti e como tornar-se-á claro mais abaixo:
              " Os pensamentos dos eremitas (do Monte Carmelo) estavam focalizados totalmente na Terra Santa. A partir
desta atitude orientada para a Terra Santa como o sagrado Patrimônio de Cristo, deve-se olhar para a Regra e espiritualidade do Carmelo".
              Tendo dado acima o contexto para a fórmula de Alberto, podem agora duas questões ser abordadas. Primeira: qual é o significado da frase do Prólogo: "caminhar pelas pegadas de Jesus" ?  Segunda: como está este projeto fundamental delineado na Regra de maneira a informar o seu todo ?

CAMINHAR NOS PASSOS DE JESUS (CAMINHAR NO SEGUIMENTO DE JESUS)

              Como diz Cicconetti, a frase in obsequio Jesu Christi, provém de 2Cor 10,5 e apresenta significados um tanto diferentes em  circunstâncias diferentes. Valabek dá um resumo do sentido Paulino deste obsequium. Um discípulo de Cristo é um doulos, um escravo ou servo que faz total entrega de si, pensa, quer e deseja em favor de Cristo, que é a Pessoa mais importante da sua vida. O discípulo, por sua vez, compartilha da verdadeira vida de Cristo e torna-se uma nova criatura, recriada à semelhança de Deus.
              Esta noção Paulina do obsequium assumiu conotações especiais na época feudal. Que imagens e matizes evocou esta expressão paaulina nos eremitas do Carmelo durante tal período feudal ?  O sentido feudal básico do in obsequio era o de serviço, o serviço que um vassalo prestava a um soberano. Assegura Cicconetti:
              " seguimento ou vassalagem em relação a um outro (obsequium) envolve deveres da parte do mestre e do súdito. Os que viviam no patrimônio de um senhor feudal prometiam bons e fiéis serviços, assistência no tempo de guerra e participação na solução de problemas ou questões. Em troca o senhor prometia proteção (...) em favor dos seus súditos.
              Este sentido profano do in obsequio foi transferido na área religiosa para o serviço devido a Deus ou (especialmente) Cristo.
              " Nos séculos XII e XIII, o relacionamento com Cristo era entendido em termos similares; o valor tradicional do serviço (...), da fidelidade (...), da vassalagem (...) ou seguimento (obsequium), do comprometimento (...), da dedicação (...) orientava para Cristo as responsabilidades de um homem com um influxo total, que penetrava todos os variados aspectos da vida de cada dia" (Cicconetti).
              Todos os cristãos eram muito dedicados a este obsequium Christi. Mas durante o período das Cruzadas o conceito adquiriu um sentido bem mais específico. Cristo tinha sido expulso do seu Patrimônio e tinha sofrido uma injustiça. Diante disto os papas evocaram aquele conceito para levarem os cristãos a lutar pela libertação da Terra Santa. Desta forma o obsequium Jesu Christi teve um sentido verdadeiramente cheio para os cruzados e outros, tais como os eremitas do Monte Carmelo, que fizeram a peregrinação ou residiam na Terra de Cristo. Os cristãos todos, igualmente, tornaram-se súditos especiais de Cristo, estavam de maneira especial dedicados ao seu serviço (obsequium) e tinham de ser-lhe completamente fiéis.
              O Patrimônio de Cristo, naturalmente, tinha que ser reconquistado, não somente pelas operações militares. Já que a queda de Jerusalém tinha sido atribuída à infidelidade e aos pecados dos cristãos, uma sincera conversão interior a Cristo e as armas espirituais (oração, penitência, jejuns) seriam mais importantes do que as armas materiais dos cruzados. O soldado de Cristo tinha de armar-se com os gestos pacíficos de Cristo. Esta era a espiritualidade baseada na Paixão de Cristo e realizada unicamente ao se carregar a Cruz, pela qual o próprio Cristo adquiriu a Terra. O obsequium Jesu Christi, portanto, seria muito mais um seguimento do Cristo Crucificado.
              E assim, no caso dos eremitas do Carmelo, a sua vassalagem particular (obsequium) a Cristo era muito melhor definida pela então corrente teologia da reconquista da Terra de Cristo por meio de um combate espiritual, à imitação do Cristo sofredor e pregado na Cruz. Abraçaram a pobreza, a penitência, o silêncio, a solidão, a oração e os jejuns, "para seguirem a lei de Cristo, estarem preparados para fazer tudo em seu nome, revestirem-se da armadura espiritual" (Cicconetti) para desarmarem as forças do mal e, sobretudo, meditarem dia e noite na Lei do Senhor.

COMO O OBSEQUIUM DÁ FORMA À REGRA

              Não pretendo analisar ou comentar cada uma das referências que a Regra faz a Cristo. Quero meramente fazer algumas observações gerais, e então mostrar como é cristocêntrica a verdadeira estruturação da Regra.
              A partir do que dissemos acima, pode-se ver como o projeto básico do seguimento de Jesus Cristo, destacado no Prólogo, é articulado na própria Regra: seguimento fiel de Cristo pela obediência ao seu representante, o prior (capítulos I, XVII e XVIII), solidão (capítulo III), meditação da Lei do Senhor, vigilância na oração, recitação dos salmos (capítulos VII, VIII e X), pobreza (capítulo IX), penitência em forma de jejum e abstinência (capítulos XII e XIII), revestimento da armadura espiritual para o combate do espírito (capítulo XIV), agir em tudo a partir da Palavra do Senhor (capítulo XIV), disposição para suportar a perseguição (capítulo XIV), silêncio (capítulo XVI). Em tudo isto Cristo está presente na comunidade eremítica como modelo, mestre, salvador e juiz escatológico (capítulo XVIII e Epílogo). Dentro desta perspectiva cristocêntrica, Elias e Maria só implicitamente aparecem na Regra, tornam-se modelos ou símbolos subordinados que ajudam a concretizar o obsequium Jesu Christi.
              Bem mais importante do que ver como os vários elementos do obsequium Jesu Christi foram estabelecidos nos capítulos da Regra é a sua estrutura cristocêntrica. Descobrimos aqui o papel que a Comunidade Cristã ideal dos Atos dos Apóstolos representou para aqueles primeiros Carmelitas no seu seguimento dos passos de Jesus.
              Há pouco vimos acima como os eremitas, que estavam no Carmelo, fizeram parte de um mais amplo movimento espiritual que defendia o retorno às Escrituras e à vida da Comunidade de Jerusalém. Aquele caminhar pelas pegadas de Jesus não era para ser vivido de um modo isolado, mas numa comunidade.
              "Fazendo eco às reflexões de Lucas, Alberto impõe aos eremitas um seguimento de Cristo pelo seguimento dos ideais e valores da Comunidade Cristã apostólica" (Valabek).
              Não é surpresa, portanto, que os capítulos VII-XI da Regra sejam paralelos a At 2,42-47; 4,32-35 (fidelidade à Palavra, perseverança na oração, partilha dos bens, unidade fraterna, culto diário como ponto central). No contexto da Regra, a Eucaristia diária é central estruturalmente, isto é, está no centro real do texto (capítulo X). Esta centralidade textual reflete a espacial centralidade do oratório eucarístico no meio das celas. Esta centralidade textual e espacial indica, por sua vez, o centro teológico da Regra, a Eucaristia.
              Esta abordagem estrutural da Regra, tendo textualmente a Eucaristia como seu centro, revela que - como era para a Comunidade de Jerusalém - o centro desta comunidade eremítica é Cristo. A Regra aparece agora visualmente como um arco: nas duas extremidades do arco estão o seguimento de Cristo (Prólogo) e a espera da volta do Senhor (Epílogo); mas o seu ápice é a presença de Cristo na Eucaristia.
              " Em torno destes três pontos de referência gira todo o resto da Regra, sendo cada um uma subseqüente atualização ou uma referência dinâmica " (Secondin).
              Na sua estrutura a Regra diz que todo o seu projeto cristocêntrico, a saber, o seguimento de Jesus (Prólogo) como antecipação da sua volta (Epílogo), está centralizado, celebrado e assumido na Eucaristia (capítulo X), na qual o próprio Cristo está sacramentalmente presente em favor da comunidade, que por sua vez está antecipando a sua volta. Em conclusão da primeira parte deste artigo, que trata do cristocentrismo da Regra e para introduzir a segunda, faço minhas as palavras de Bruno Secondin:
              " Na Regra, portanto, encontramos uma cristologia que estimula o discipulado e gira em torno da «vida em Cristo», da escuta orante da Palavra, da celebração do Mistério, de uma visão de meditação como um modo de imprimir Cristo dentro da vida de cada um (...) e da espera da sua volta. O mesmo estilo de vida (...) como uma dedicação ao Senhor na Terra Santa (...) é agora transformado em uma caminhada aberta a ser empreendida em qualquer tempo ou lugar".
              Como este estilo de vida no seguimento de Jesus pode ser transformado em nosso tempo bem diferente da sociedade feudal e das Cruzadas, que tiveram influência sobre a Regra de Alberto ?       
             
A REFLEXÃO CRISTOLÓGICA CONTEMPORÂNEA

              A retomada do cristocentrismo da Regra para os nossos dias deve levar muito em conta a cristologia contemporânea, porque cada visão de Cristo está condicionada à época. Como a cristologia contemporânea vê a Pessoa de Cristo ? Esta não é uma pergunta fácil de responder, porque atualmente existem muitas maneiras de ver a Cristo, ou seja, muitas cristologias. Também não é possível, nem sequer necessário para o nosso propósito apresentar aqui um breve panorama das cristologias contemporâneas. Todavia, uma preocupação comum à maior parte das cristologias contemporâneas é retomar seriamente o significado da humanidade histórica de Jesus. Assim muitas cristologias hoje, como a de K.Rahner, E.Schillebeeckx,
W.Jaspers, W. Pannemberg, J.Sobrino se caracterizam como cristologias "de descida" ou cristologias "de subida", isto é, cristologias que se movimentam entre o Jesus Histórico e o Cristo da fé, do dogma. O "Jesus Histórico" é atualmente uma imagem conjunta de Jesus (suas palavras, gestos, auto-consciência, projetos, reconhecimento do seu destino), que é montada por meio do recurso ao método da crítica histórica aplicada aos textos do Novo Testamento. É a aspectos selecionados deste Jesus Histórico que eu tenho recorrido, pelo fato de poderem eles ajudar-nos mais a rearticular o cristocentrismo da Regra. Refletindo o consenso dos eruditos de hoje, Norman Perrin declara:
              " O aspecto central do ensinamento de Jesus é o que se refere ao Reino de Deus (...). Jesus surgiu como alguém que proclamou o Reino; tudo o mais, na sua mensagem e ministério, cumpre uma função em vista desta proclamação e dela deriva (...). Entre todos os títulos e descrições que foram aplicados a Jesus através dos séculos, o único que melhor resume a sua presença histórica é aquele único, cuja circulação se deve muitíssimo a Bultmann: «Jesus é o Proclamador do Reino de Deus».
              Jesus, portanto, não prega a sua própria Pessoa, mas o Reino de Deus (malkuth shamayim) ou, mais precisamente, "o Reinado de Deus". Esta proclamação tem suas raízes na época de Davi. Mas sob os profetas e as visões apocalípticas transforma-se numa esperança escatológica. É este substrato escatológico do Reino que forma o contexto para a proclamação própria de Jesus e para a sua práxis. Assim por Reino de Deus, Jesus se refere em primeiro lugar ao final por parte de Deus, atividade salvífica definitiva dentro da História, no decorrer da qual Deus se torna plenamente Rei, se  torna plenamente o Deus da Salvação. Em segundo lugar, por Reino de Deus, Jesus se refere às bênçãos escatológicas da salvação tais como a paz e a justiça, que resultarão da ação decisiva do reinar de Deus.
              Entre outras, as características da proclamação do Reino de Deus por Jesus e a sua práxis são de Jesus somente. Este Reino de Deus não é só o futuro, mas o presente também e de fato já se está  introduzindo agora na História, precisamente por intermédio de Jesus, de suas palavras e ações. Jesus, portanto, vê a si mesmo como o Profeta escatológico. O único por meio de quem a decisiva realidade escatológica de Deus está sendo agora intermediada para a História. Nas suas palavras e ações poderosas ou milagres (dunameis), estão acontecendo as bênçãos escatológicas da Salvação. Ungido com o espírito escatológico profetizado por Joel, Jesus anuncia a Boa Nova aos pobres, proclama a presença do Ano Jubilar, no qual os cativos são libertados e reconduzidos à sua pátria, dá a vista aos cegos, cura os coxos, os leprosos e os surdos, proclama aos pobres as boas notícias e amarra o homem forte, Satanás e o seu reino. Através da práxis de Jesus sobre o Reino de Deus, a criação e a História já estão começando a ser levadas à consumação escatológica. Nas palavras de Orígenes Jesus é a auto-basileia. A sua mensagem e a sua causa não podem ser separadas da sua Pessoa.
              Para Jesus o Reino de Deus ocasiona, portanto, a transformação total da criação e da História. É a realização da esperança escatológica de Israel de que no fim dos tempos toda alienação e todo mal - seja ele físico ou moral - estarão eliminados e reinarão a justiça e a paz. Nada escapará à sua presença salvífica regeneradora. Para Jesus, portanto, este Reino de Deus, enquanto permanente, proeminente ou futuro na sua conclusão, era muito bem uma realidade, que era também deste mundo e estava começando a sanar a realidade em todas as suas dimensões: política, social, econômica, pessoal e cósmica. Não pode ser totalmente escatologizado ou espiritualizado nem pode ser referido somente à realização escatológica de um outro mundo nem somente a dimensões espirituais do homem e da mulher.
              Um aspecto a mais do Jesus Histórico a ser observado é a sua reunião com pecadores ou marginalizados. A freqüente reunião de Jesus com pecadores e o seu comer com eles só podem ser entendidos nos termos do seu serviço ao Reino de Deus. No tempo de Jesus, o perdão definitivo do pecado era o mais feliz aspecto da esperança apocalíptica. Quando Deus reinasse plenamente, todo o pecado seria perdoado. Mas tal perdão estava limitado ao temor de Deus e à observância legal dos Judeus. O perdão não era estendido aos Pagãos nem àqueles Judeus, que se desviaram da lei e dos costumes da classe média dos Fariseus ou, que devido a certas profissões ou práticas, se converteram em Pagãos. Aos olhos dos Fariseus eram todos pecadores sem Deus, os marginalizados, inclusive os que não eram educados na Lei, os pobres, os cobradores de impostos, os criadores de porcos, as prostitutas, os doentes, os cegos, os aleijados, os possuídos pelo demônio, os mendigos, os ladrões, os jogadores e agiotas. Marginalizados, oprimidos, discriminados e injustiçados pela sociedade, é especialmente em favor destes que Jesus realiza os seus milagres e proclama a Boa Nova do Reinado de Deus, a Boa Notícia para eles que até então só tinham ouvido a má notícia da exclusão e da condenação. Na verdade, para Jesus a atividade de rei por parte de Deus estava sendo manifestada em primeiro lugar no amor misericordioso para com eles. É para com estes proscritos que Jesus e o seu Pai têm solidariedade e um amor preferencial.
              Jesus não apenas juntou-se aos pecadores e marginalizados e os servia, mas ainda mais, repartiu com eles o pão e assim "desclassificou-se" com eles, isto é, tornou-se um deles. É como diz Nolan:
              " Seria impossível sobreestimar o impacto que estas refeições devem ter causado nos pobres e pecadores. Recebendo-os como amigos e iguais, Jesus acabou com o seu envergonhamento, humilhação e complexo de culpa. Pelo fato de Jesus tê-los tratado como pessoas, Jesus deu-lhes um sentimento de dignidade e libertou-os do seu cativeiro".           
              É, porém, ainda mais importante o significado teológico destas refeições. Para o Judeu da época de Jesus todas as refeições eram sagradas. A refeição em comum não significava somente paz, amizade e reconciliação, mas tudo isto aos olhos de Deus. A refeição celebrava a restauração do relacionamento contraído e a chegada do Reino de Deus.
              As refeições de Jesus com os pecadores eram parábolas vivas, portanto: celebravam a alegria presente daqueles que haviam aceito o Deus de Jesus e alegremente antecipavam o "éschaton", no qual a graça salvífica de Deus estará plenamente presente. Eram um símbolo em ação da mensagem e da missão de Jesus de oferecer a Paz de Deus, o seu favor e reconciliação, um sacramento ou antecipação (prolépsis) do futuro Reino de Deus, que nos profetas e videntes era simbolizado por uma refeição. E o que era mais escandaloso nestas refeições era que os pecadores eram convidados a tomar a ceia ao lado dos justos. Não mais ditaria a Lei com quem uma pessoa haveria de cear. Não mais seria o pecador bem claramente distinto do justo. Graça e misericórdia conquistariam precedência sobre a Lei. Este era o vinho novo a arrebentar os odres do vinho velho.
              A título de resumo podemos dizer que Jesus teve consciência pessoal de ser profeta escatológico de Deus, cuja missão era fazer penetrar no Reino de Deus e nas suas bênçãos, que abrangem todos os aspectos da Criação e da História. Na sua mediação do Reinado de Deus em favor de homens e mulheres, Jesus o orientava de maneira especial em favor daqueles que eram os párias e marginalizados do seu tempo, as vítimas da injustiça e da opressão. Para eles, especialmente, Jesus teve boas notícias. Para eles, especialmente, Jesus se mostrou a si mesmo como o sacramento da misericórdia de Deus. Para eles, estar tristes na presença de Jesus era de uma existencial impossibilidade.

A REARTICULAÇÃO DA CRISTOCENTRICIDADE DA REGRA

              O projeto de todos os carmelitas é caminhar nos passos de Jesus. Mas a nossa concepção de Jesus muda como também muda a situação histórica. E as mudanças da situação histórica apresentam novas mudanças ao nosso caminhar pelos passos de Jesus. Portanto, para rearticular a espiritualidade cristocêntrica da Regra de Alberto, devemos levar em consideração tanto a nossa concepção atual de Jesus, como também a nossa situação atual. Assim, antes de tentarmos uma rearticulação, faz-se necessária uma palavra sobre a atual situação dos países desenvolvidos do 1º Mundo.
              O filósofo jesuíta, John F.Kavanaugh, vê e analisa a nossa atual situação, empregando o modelo de interpretação do "sistema do mercado", inspirado no Marxismo. O "sistema do mercado" é um paradigma para a vida dos homens. É uma maneira de considerar-nos a nós mesmos e aos outros como objetos ou mercadorias, e assim viver. As coisas substituem as pessoas; as relações materiais com as coisas deslocam as verdadeiras relações humanas. O mercado torna-se um deus, que leva o ser humano a adorar objetos e, no seu relacionamento com eles, tratá-los como se fossem pessoas e no relacionamento com as pessoas, tratá-las como se fossem objetos, fazendo com que as pessoas sejam possuídas pelas próprias posses e produzidas pelos próprios produtos. Tornam-se então alienadas de si mesmas e transformadas em verdadeiras mercadorias. Existe até um "sistema do mercado" do conhecimento. O conhecimento é reduzido a conhecimento técnico, científico, instrumental, "coisificado".   Este "sistema do mercado" com os seus valores preeminentes de mercado e consumo torna-se uma doença patológica, pela qual as pessoas valorizam a si mesmas em termos de produtividade e utilidade, com o resultado de não serem um valor humano intrínseco.
              Por sua vez o "sistema do mercado", como valor fundamental da nossa sociedade, favorece a um mercantilismo ético de um individualismo moral bruto, que resulta em violência, dominação, manipulação, medo, alienação, racismo, chauvinismo, hedonismo, mecanização do sexo, aborto, eutanásia, consumismo exagerado e destruição da vida de família.
              Em contraposição ao "sistema do mercado" há um outro paradigma da existência humana: o "sistema da pessoa". É ele "um modo de compreender e valorizar homens e mulheres como pessoas insubstituíveis, cuja fundamental identidade se preenche num harmonioso relacionamento" (Kavanaugh). O "sistema da pessoa" promove o valor intrínseco da pessoa, ou seja, a liberdade, o respeito, a promoção, a autodoação, a generosidade, a justiça, a paz, o espírito de perdão, a saúde, a compaixão, o engrandecimento e elevação daqueles que são os últimos. Estes dois sistemas, o "do mercado" e o "da pessoa", são opostos em todos os sentidos. E assim Cristo e o Evangelho como plena revelação do "sistema da pessoa" estão em conflito radical com a nossa sociedade contemporânea e o seu "sistema do mercado" e até mesmo os subvertem. Por necessidade, seguir a Cristo é ser da contracultura.
              Como podemos perceber acima, foi a espiritualidade das cruzadas que ajudou a definir o obsequium Jesu Christi dos primeiros eremitas do Carmelo como uma das maneiras de imitar Jesus, na batalha espiritual própria dele, por meio da pobreza, penitência, solidão, silêncio, obediência e oração. Assim, seguir os passos de Jesus não era um empreendimento espiritual meramente; tinha também conotações políticas: a intenção deles era reconquistar a Terra de Cristo. Envolvidos embora no combate espiritual, estes primeiros eremitas estavam bem mais comprometidos com a Terra de Cristo, como seus feudatários, e eram igualmente legítimos cidadãos deste mundo. Como vassalos de Cristo eram solidários com a terra e com o seu povo e tinham responsabilidade por eles.
              É desnecessário dizer que as Cruzadas terminaram e a reconquista da Terra física de Cristo já não é uma prioridade. Mas para os Carmelitas caminhar pelos passos de Jesus permanece uma prioridade. Feita acima a análise da situação dos nossos tempos em termos do "sistema do mercado" e feito também acima um esboço do Jesus Histórico, como podemos agora articular para os nossos dias o "caminhar pelas pegadas de Jesus Cristo" ? Vou oferecer três sugestões.
              Primeira: não é qualquer Jesus que serve. No seguimento nosso dos passos de Jesus, que Jesus seguimos ? Nem todo Jesus se reconcilia com o Jesus Histórico e com a sua práxis. Jesus tem sido usado, abusado e manipulado para se tornar um apoio ideológico do "status quo". Tem sido invocado, e até mesmo se lhe tem rezado para manter o oprimido na opressão e os opressores na sua prepotência, os ricos nas suas riquezas e os não-ricos nas suas não-riquezas. Se Bultmann desmitologizou Jesus, nós devemos desassossegá-Lo de maneira tal que Ele não seja conivente com os ídolos, tais como o "sistema do mercado"; de maneira tal que Ele não deixe a realidade caminhar em paz.
              Segunda: caminhar no seguimento de Jesus quer dizer assumir a práxis do Reino de Deus própria de Jesus. Ainda existe uma Terra de Jesus com o seu povo a serem resgatados, mas esta Terra com o seu povo não se limita à Terra geográfica de Cristo. Jesus estava inserido muito mais do que isso. Estava dentro do desabrochar do Reino de Deus, agora, dentro da História, um Reino de Deus que envolveria e transformaria toda a Criação e toda a História, um Reino que já agora na História iria começar a expulsar o reino de Satã com as suas seqüelas, tais como injustiça, violência, guerra, opressão, dominação; um Reino que tudo iria restaurar no estado paradisíaco. A partir da perspectiva da proclamação do Reino de Deus por parte de Jesus e da sua práxis, a Terra e o povo de Jesus abarcam toda a Criação e toda a História, especialmente os marginalizados, as vítimas da opressão e da injustiça, os últimos entre irmãs e irmãos.
              Caminhar no seguimento de Jesus Cristo para reconquistar a Terra é, portanto, inserir-se na História e nos seus conflitos, assumir uma cidadania terrestre e política, como fizeram os primeiros Carmelitas do Carmelo. O obsequium da Regra autoriza uma espiritualidade não privatizada, não espiritualizada, não escatologizada. Isto exige compromisso com a Terra, com o aqui e agora da História e todos os seus conflitos crivados de pecados. No contexto das nações desenvolvidas e industrializadas do 1º Mundo, esta inserção na História, este compromisso com a Terra tornam-se especiais pela denúncia profética do "sistema do mercado" e o anúncio do "sistema da pessoa". O ídolo do "sistema do mercado", que reduz a pessoa a algo consumível e reduz a experiência humana, a algo quantificável, este ídolo e os seus escravizadores valores de mercantilismo e consumismo, com a sua ética de individualismo  brutal e os seus frutos de violência, dominação, manipulação, alienação, racismo, chauvinismo, mecanização do sexo, aborto e dissolução da vida familiar, tornam-se o novo Satanás, o novo adversário que rodeia como um leão a rugir, procurando a quem possa devorar. Dedicar-se em nossos dias à práxis do Reino de Deus como Jesus significa entrar no combate contra este leão a rugir do "sistema do mercado", e ficar ao lado dos valores interiores das pessoas, a liberdade, o desapego, a generosidade, a justiça, a paz, o espírito de perdão, a misericórdia e a promoção daqueles que são os últimos.
              Terceira: caminhar no seguimento de Jesus exige entrar na luta espiritual contra o leão do "sistema do mercado" que vive a rugir. Porém, em que se baseia esta luta espiritual ? Proponho três elementos: os votos; silêncio, solidão, oração; vida comunitária.
              (a) A pobreza, a castidade e a obediência são valores contraculturais. Opõem-se ao "sistema do mercado", pois propõem a humanização e libertação, libertação diante dos poderes, com que o sistema nos empurra para os valores do mercado do poder, da dominação e da posse; liberdade para valorizar os outros como pessoas. Afinal, aí está uma ciência econômica para os votos. Verdadeiramente eles não ajudam o desenvolvimento financeiro.
              (b) Existe aí também uma ciência econômica para o silêncio, a solidão e a oração. São também financeiramente sem valor e são, por isso, uma  denúncia  profética  contra  o  "sistema  do  mercado".   Silêncio e solidão são cheios de riscos, por reclamarem a privação e pobreza interiores tão fortemente negadas pelo mercantilismo e materialismo do "sistema do mercado". Silêncio e solidão são desesperadoramente incomercializáveis. Oração é uma atitude de interioridade que exige desvencilharmo-nos das regras de comportamento comuns ao "sistema do mercado" da existência. Oração envolve o estar presente em Deus e, portanto, em nossa autêntica identidade de pessoas. Oração é um ataque contra a fraude do mero desempenhar papéis imposto pelo "sistema do mercado"; é um centralizar-se no ser mais do que no ter do "sistema do mercado". A oração é uma desmercantilização da nossa vida e uma reapropriação da nossa personalidade.
              Silêncio, solidão e oração desempenham algum papel em nosso combate espiritual. Estes três valores típicos do deserto Carmelita fazem-nos prestar mais atenção à gratuidade do amor de Deus em nossa vida, dispõem-nos a reconhecer que Deus está presente em todas as coisas, purifica a nossa presença junto aos outros daquela tendência do "sistema do mercado" de lhes impor uma vontade  estranha e facilita assim um sincero e pleno encontro com o nosso próximo. Silêncio, solidão e oração tornam-se o material com que se constroem os profetas místicos. Porque os profetas captam a divina presença, podem ele/ela captar também a ausência de Deus na História, "o sistema do mercado". E é esta consciência da ausência de Deus que faz com que o profeta denuncie o que está velho, o reino de Satanás e anuncie o novo, o Reino de Deus. Silêncio, solidão, oração constituem a escola dos profetas de Elias.
              (c) A vida em comunidade também é uma forma de combate espiritual. Os primeiros eremitas do Monte Carmelo realizaram este seguimento de Jesus Cristo, abraçando a visão ideal da Comunidade de Jerusalém. A fórmula de vida de Alberto exprime esta visão comunitária em termos de partilha de bens e de partilha de vida, um estilo de vida de igualdade, um discernimento comunitário-dialogal e mais ainda o respeito pela pessoa individual. Os eremitas, obedecendo à Regra, passaram logo a denominar-se irmãos, irmãos comprometidos com uma forma participativa de vida em comum. Esta vida em comum é ela também uma contracultura, uma denúncia profética contra o "sistema do mercado" com a sua coisificação das pessoas por meio de relacionamentos de dominação e desumanização; com a sua falta de sensibilidade e respeito; com a sua escravização da liberdade; com a sua idolatria da competição, da vantagem e da prepotência. Por sua vez uma vida comunitária como tal demonstra  e testemunha os valores do "sistema da pessoa": os valores interiores das pessoas, liberdade, desprendimento, generosidade, justiça, paz, espírito de perdão, saúde, misericórdia, e promoção daqueles que são os últimos.
              A Terra de Cristo ainda precisa de ser reconquistada. Todas as coisas ainda têm de ser submetidas a Ele, de maneira que o Seu Pai possa reinar plenamente e ser tudo em todos. Como nos dias de Alberto e dos primeiros eremitas do Carmelo, a Terra será reconquistada não pelas armas nem pela força, e sim pelo seguimento de Jesus Cristo. Este obsequium Jesu Christi envolve uma batalha espiritual que, assim como ao próprio Jesus, nos insere dentro da História, no meio da luta contra o leão a rugir. Caminhar pelos passos de Jesus Cristo é um apelo para a vida comunitária de resistência contracultural, enraizada no silêncio, na solidão, na oração, repromulgando a práxis profética do Reino de Deus da parte de Jesus, na solidariedade com todos, mas especialmente com   aqueles que são os pecadores e rejeitados dos nossos dias.
*Traduziu, Frei Alfredo Francisco de Souza, ex- noviço Carmelita. Revisão de Frei Pedro Caxito O.Carm. (In Memoriam). (20-05-93).

             

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